Dos sete tiros ao boicote inédito da NBA. O que aconteceu em Kenosha?

Afro-americano de 29 anos sobreviveu quando foi atingido pela polícia, mas o caso em plena convenção republicana pode ter impacto político e já levou a protestos sem precedentes da parte de jogadores profissionais das ligas de basquetebol, basebol e futebol.
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Jacob Blake, um afro-americano de 29 anos, foi atingido por quatro dos sete tiros disparados contra si por um agente da polícia em Kenosha, no Wisconsin, quando alegadamente resistia à detenção, desencadeando novos protestos - pacíficos, mas também violentos - contra as autoridades policiais nos EUA.

Numa das noites de confrontação na cidade, com a presença de contramanifestantes e milícias armadas nas ruas, dois manifestantes foram mortos e um terceiro ficou ferido, com a polícia a deter um adolescente de 17 anos. Kyle Rittenhouse, fascinado pelas forças de segurança, que dizia ser o seu trabalho guardar os edifícios e proteger as pessoas.

Blake sobreviveu ao tiroteio (apesar de poder ficar paraplégico), pelo que o seu nome não se junta aos de George Floyd, Breonna Taylor e muitos outros que morreram às mãos da polícia. Mas o incidente desencadeou novos protestos com apelos à justiça e ao fim do financiamento das forças de segurança.

Além disso, o impacto do caso está a ter repercussões fora do normal no desporto norte-americano, com os jogadores a irem mais longe do que simplesmente colocarem um joelho no chão durante o hino nacional. Houve um boicote inédito que levou ao adiamento de três jogos da liga de basquetebol (NBA), com basebol e futebol a seguirem o mesmo caminho.

E em plena convenção republicana, a menos de três meses das presidenciais norte-americanas, qualquer caso transforma-se numa arma de arremesso político.

Como é que Blake ficou ferido?

No domingo, 23 de agosto, os serviços de emergência receberam uma chamada por volta das 17.11. Uma mulher dizia que o namorado - deu o nome de Blake - estava em casa em Kenosha, quando não era suposto estar, e que lhe tinha tirado as chaves, recusando sair.

Os agentes da polícia enviados para o local receberam a indicação de que havia uma pessoa procurada no endereço indicado - havia um mandado de captura em nome de Blake por causa de um caso de problemas domésticos, datado de maio.

A mulher continuava na linha com os serviços de emergência, mas quando lhe foi pedida uma descrição de Blake, alegou que ele estava a ir-se embora e deixou de cooperar com as autoridades. O primeiro agente chegou três minutos depois de a chamada ter sido registada, seguido de outros.

Quando os agentes chegaram, tentaram usar um taser para travar o suspeito, um afro-americano, sem sucesso, debatendo-se com ele no exterior do veículo (um SUV) do lado do passageiro. Ele conseguiu contornar o carro para abrir a porta do lado do condutor, com pelo menos três agentes (dois homens e uma mulher) a apontarem as armas.

Quando Blake se inclina para dentro do carro, um agente agarra-lhe na T-shirt e depois dispara contra as suas costas à queima-roupa. Os vídeos gravados do momento registam sete tiros - quatro terão acertado em Blake. No interior do SUV estavam os seus três filhos menores.

Estava Blake armado?

As autoridades descobriram uma faca no chão do veículo do lado do condutor, segundo o procurador-geral do Wisconsin, Josh Kaul, que diz que Blake admitiu ter uma faca - uma testemunha contou que ouviu a polícia gritar "larga a faca" antes de disparar. Os advogados da família negam que ele tivesse a arma no carro.

Depois de terem disparado os tiros, os agentes são filmados a tentar salvar a vida do suspeito até à chegada da ambulância, que o transportou para uma escola onde um helicóptero estava à espera para o levar para o hospital. O pai de Blake disse na terça-feira que o filho estava paralisado da cintura para baixo e que os médicos não sabem se a lesão é permanente.

O que aconteceu aos agentes envolvidos?

A investigação sobre o que aconteceu ainda está a decorrer. Enquanto isso, dois dos agentes foram suspensos.

O oficial Rusten Sheskey, que está na polícia de Kenosha há sete anos, foi identificado como o responsável pelos disparos. A polícia desta cidade não usa câmaras corporais, com cortes orçamentais a travarem a implementação da medida que foi aprovada já em 2017 pelas autoridades locais.

Os carros da polícia têm câmara, mas não se sabe se filmaram alguma coisa.

Como é que a cidade reagiu?

Logo no domingo houve protestos violentos em Kenosha, com carros de polícia incendiados e danos em edifícios, nomeadamente no tribunal. As manifestações, principalmente pacíficas durante o dia, tornavam-se violentas à noite.

Na terça-feira, o governador Tony Evers (democrata) declarou o estado de emergência e na quarta-feira pediu a presença de 500 guardas nacionais na cidade. O governador indicou ainda ter recebido pedidos de membros da comunidade para delegar poderes em grupos de cidadãos civis armados - no Wisconsin é legal que pessoas com mais de 18 anos andem armadas sem licença -, para ajudar a proteger a cidade, mas não o fez.

Contudo, há vídeos de um veículo armado da polícia a distribuir água entre grupos com armas, segundo a NBC Chicago. "Agradecemos que estejam aqui", ouve-se o agente dizer através de um altifalante, mas o xerife local, David Beth, indicou que os agentes teriam distribuído água a todas as pessoas.

Nas redes sociais, surgiram apelos para que pessoas armadas fossem para as ruas da cidade. Pelo menos um grupo, intitulado Kenosha Guard, promovia um evento "Cidadãos Armados para Proteger as Nossas Vidas e Propriedades", com o Facebook a admitir que não tomou qualquer ação apesar de denúncias de outros utilizadores de que havia incitação à violência (segundo noticiou o site The Verge). Os moderadores consideraram que não violava as políticas da plataforma.

O que aconteceu nos confrontos?

Na terça-feira à noite, com essas milícias nas ruas, um adolescente de 17 anos, Kyle Rittenhouse, disparou uma arma automática contra os manifestantes, matando dois deles. Um terceiro está ferido com gravidade, mas as autoridades dizem que deve sobreviver.

As vítimas não foram formalmente identificadas, sabendo-se apenas que é um homem de 26 anos de Silver Lake, no Wisconsin, e outro de 36 anos, de Kenosha. O ferido também tem 36 anos e é de West Allis, Wisconsin.

Os vídeos mostram que passou horas a "patrulhar" a cidade, tendo dito aos jornalistas (antes do tiroteio) que considerava parte do seu trabalho "proteger as pessoas" e "correr para o perigo" se alguém estivesse ferido - além da arma teria um kit de emergência médica.

Noutro vídeo, uma pessoa armada é vista a correr numa rua, seguida de uma multidão. Segundo a análise dos vários vídeos, feitos pelo The New York Times, quando ele está a ser perseguido, alguém dispara para o ar. Rittenhouse vira-se na direção dos tiros, de onde vem um perseguidor, com o adolescente a disparar quatro tiros, atingindo a vítima na cabeça.

Quando está a fugir (telefonou a alguém a dizer "acabei de matar alguém"), várias pessoas apontam na sua direção e dizem que é o atirador. Rittenhouse acaba por tropeçar e cair, disparando quatro tiros para as pessoas que vão na sua direção e que tentam tirar-lhe a arma. Uma pessoa parece ser atingida no peito, segundo o jornal norte-americano, outra que também está armada é atingida no braço e foge. No vídeo ouvem-se vários tiros.

Veículos da polícia, nas proximidades, aproximam-se e Rittenhouse dirige-se para eles, com os braços no ar, mas a polícia continua, aparentemente para ir ajudar as vítimas, apesar de as pessoas gritarem que ele é o atirador.

Rittenhouse seria detido na quarta-feira, em casa da mãe, sendo acusado de homicídio.

Quem é Rittenhouse?

Segundo as suas redes sociais, citadas pelos media norte-americanos, o jovem de 17 anos de Antioch, no Ilinóis (a meia hora de distância de Kenosha, mas noutro estado), é fascinado pela polícia, tendo a foto no Facebook com a indicação "Blue Lives Matter", um movimento pró-polícia que tem ganhado força numa altura em que os manifestantes exigem um corte no financiamento nas forças de autoridade.

Tem ainda várias fotos com uniforme da polícia, com o Departamento de Grayslake a confirmar que foi membro do programa de cadetes da localidade. E fotos com armas, a praticar tiro ao alvo ou a desmontar e a montar uma espingarda de assalto.

O Facebook removeu a conta de Rittenhouse (fez o mesmo com o Instagram, da mesma empresa), tendo dito que não encontrou qualquer relação entre estas e a página Kenosha Guard - que depois do tiroteio foi finalmente apagada.

Nas suas redes sociais havia ainda indicações de que Rittenhouse era uma apoiante do presidente Donald Trump, tendo participado na primeira fila de um dos seus comícios para a reeleição, no Iowa.

Que impacto político terá este caso?

Os democratas temem que as imagens de caos, com carros e empresas queimadas ou vandalizadas, e de pessoas armadas nas ruas de Kenosha sirva para reforçar a mensagem de Trump de que é preciso uma mão forte para resolver este problema. Os republicanos, em plena convenção, fizeram questão de reforçar isso mesmo.

"A violência deve parar, seja em Minneapolis, Portland ou Kenosha", afirmou o vice-presidente, Mike Pence, no seu discurso, na quarta-feira à noite, acrescentando: "Teremos lei e ordem nas ruas deste país para cada americano de cada raça, credo e cor."

Para Pence, os norte-americanos "não estarão seguros nos Estados Unidos de Joe Biden", que descreveu como um "cavalo de Troia da esquerda radical". E reiterou: "A dura verdade é que eles não estarão seguros na América de Joe Biden."

O candidato democrata condenou a "violência desnecessária" da polícia em Kenosha, indicando ter falado com a família do afro-americano e que ficou "doente" com o vídeo do tiroteio. "Precisamos de acabar com a violência e pacificamente unirmo-nos para exigir justiça", indicou.

Enquanto Biden focou a mensagem no racismo sistémico da polícia, Trump foi direto à violência dos protestos antirracistas: "O governador deve chamar a Guarda Nacional no Wisconsin. Está pronta, disponível e é mais do que capaz. Acaba com o problema rapidajmente", indicou na terça-feira à noite.

Há quatro anos, Trump ganhou o Wisconsin por menos de 23 mil votos, tendo sido o primeiro republicano em 44 anos a ganhar no condado de Kenosha. A convenção democrata decorreu neste estado, mas reduzida ao mínimo e sem sequer a presença de Biden.

E o que aconteceu no desporto?

Desta vez, os atletas não se limitaram a colocar o joelho no chão em protesto. Seguindo o exemplo dos jogadores da equipa de basquetebol Milwaukee Bucks (do Winsconsin), que recusaram sair do balneário e jogar na quarta-feira à noite contra os Orlando Magic, jogadores da liga de futebol e basebol recusaram também jogar, obrigando a adiar vários jogos.

Só na NBA, outros dois jogos previstos para quarta-feira foram adiados - os jogadores questionam se as ações de protesto que têm feito até agora não têm impacto ou se o próprio entretenimento que os jogos proporcionam não está a distrair as pessoas dos problemas que existem.

O boicote dos Milwaukee Bucks não tem precedentes, com os jogadores mais tarde a fazer uma declaração a exigir justiça por Blake e que os congressistas estaduais voltassem a reunir-se "após meses de inação" e tomem medidas em relação à reforma do sistema de justiça. Os proprietários da equipa apoiaram os jogadores.

Após discussões com a Liga, havia ontem acordo para retomar os jogos.

No basebol, três jogos foram adiados porque os jogadores decidiram boicotar as partidas, assim como cinco jogos de futebol que estavam previstos para quarta-feira (apesar de um sexto ter tido lugar).

Nos desportos individuais, também houve boicotes. A tenista japonesa Naomi Osaka disse que não iria competir na semifinal de um open que está a decorrer em Nova Iorque, na contagem decrescente para o Open dos EUA que começa para a semana. "Antes de ser atleta, sou uma mulher negra", escreveu no Twitter, dizendo que havia temas mais importantes neste momento do que vê-la jogar ténis. O torneio foi suspenso, com Osaka a aceitar um dia depois voltar à competição.

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