A dor que dói sem se ver, a dor que desatina e que se torna ferida no dia-a-dia atinge os portugueses. É verdade. Mais do que os outros europeus. É dor que se chama crónica e que atinge mais de três milhões de portugueses. Estudos recentes revelam que a prevalência da dor crónica é da ordem dos 37%. Há muitos que sofrem. É verdade. Alguns acham até que é um fado, mais um. Que é uma questão cultural, social e até económica. A verdade é que são muitos que sofrem. Tanto homens como mulheres - embora elas possam ter mais fragilidades orgânicas geradoras de dor..A frase "não dói nada, é tudo da cabeça". Tantas vezes se ouve que se acaba por aceitar, interiorizar de tal forma que se torna verdade. E sofre-se, às vezes muito. Falta-se ao trabalho, perde-se dias de férias, mete-se baixa, pede-se reforma antecipada. "É um calão, não quer fazer nenhum." Tantas vezes se ouve que se interioriza. E sofre-se. E a dor acaba por não ser tratada e "custar ao país mais de quatro mil milhões de euros por ano. Mais de 2,7% do PIB nacional em custos diretos e indiretos. Ou seja, em custos na saúde, com tratamentos e medicamentos, e em custos na segurança social, faltas ao trabalho, baixas médicas e reformas antecipadas", revela ao DN a médica Cláudia Armada, da Associação Portuguesa para o Estudo da Dor (APED)..O mesmo estudo, realizado pelo médico Castro Lopes e que envolveu milhares de portugueses inquiridos por telefone, revela que um em cada três portugueses sofre. De dor crónica. E de tal maneira que muitos, cerca de metade, não conseguem sequer estabelecer ou manter relações amorosas. A dor mina a vida, a saúde e o trabalho..A dor é maldita ou maldita é a dor. Torna-se inimiga, mas aceitamo-la, torna-se insuportável, mas habituamo-nos. Porquê? Porque homem que é homem não tem dores, ou não toma nada para a atenuar. Ou porque quando é dor de mulher é uma coisa de mulheres. Ou porque simplesmente não há como explicar a dor. Falta-nos "ensino", diz Cláudia Armada, para perceber a dor e lidar com ela..Mas falta a todos. À população em geral, às faculdades de medicina, que não têm sequer uma disciplina que ensine a identificar e a tratar a dor, como aos políticos, que nunca olharam para o problema como uma "verdadeira prioridade"..A anestesista, que é também a coordenadora da unidade da dor do IPO de Lisboa, não tem dúvidas: "Ainda há muitos mitos e estigma em relação à dor. É isso que deve ser combatido." Um dos objetivos da APED para 2018-2019 é acabar com estas ideias, é sensibilizar a população. Até porque fica muito caro ter pessoas vivas incapazes..Portugal já podia ter melhorado mais o seu modo de viver a dor. É preciso fazer alguma coisa. Até porque cada vez mais o tratamento farmacológico não chega. É preciso ensinar o doente a avaliar a dor e a perceber do que necessita. A psicoterapia pode ser uma terapêutica - e não só quando a dor é só dor de alma -, a acupunctura também, o mind fulness igualmente. É preciso jogar em várias frentes para que todos aprendamos a viver com dor. Ou melhor, com alguma dor, mas felizes..Na véspera do Dia Nacional da Dor, o DN fez algumas perguntas à médica Cláudia Armada. Aqui ficam as respostas para saber o que de mais importante há sobre a dor. .O que é a dor?.A dor que todos nós conhecemos é um sintoma que serve de alerta. Ou seja, há pessoas que não sentem dor, embora sejam muitos poucos casos no mundo, e que morrem precocemente, porque estão sujeitos a vários tipos de acidente. Mas a dor normal é um sintoma protetor. O problema é que a dor pode perder esta sua função de alerta e tornar-se uma doença, atingindo as várias esferas da vida. Se partir um pé sei que resolvo a situação dentro de um mês ou pouco mais e que fico bem, mas uma dor crónica, e a de desesperança no tratamento, ganha um significado muito grande. A dor crónica pode fazer que as pessoas fiquem incapazes para fazer a sua vida normal. Portanto, a dor tanto é sintoma como pode ser doença..Porque sentimos dor?.Exatamente porque precisamos de ser protegidos. A dor é isto. No nosso organismo temos a trabalhar ao mesmo tempo fatores que nos dão dor e fármacos, como a morfina, que tomamos para tirar a dor. É um ambiente de equilíbrio, porque, se não houvesse a morfina a trabalhar no organismo para não termos dor e para nos ajudar a funcionar, poderíamos ter dores horrorosas. Só não temos dores nas nossas vidas porque vivemos neste equilíbrio. Quando este equilíbrio se rompe, então temos dor..A dor é física ou também pode ser psicológica?.A maior parte das vezes a dor é física, mas podemos também ter dor psíquica. Podemos ter só dor de alma. Mas, muitas vezes, a dor começa por ser física e depois torna-se psicológica. Ou seja, a dor física é uma informação que chega ao cérebro e que o muda. As ressonâncias magnéticas de um doente com dor são diferentes das de um doente sem dor. A existência de dor no nosso corpo muda o nosso cérebro. E ao fim de um tempo de não ser tratada a dor física passa a ser psíquica também..Quando se torna psíquica deve ser tratada?.Claro. Não existe tratamento de dor crónica que não seja multidisciplinar. O bom tratamento da dor crónica e a única forma de a tratar é com uma abordagem em torno das suas múltiplas funcionalidades: parte física, psíquica, emocional e até económica. Porque para tratar a dor é preciso ter reabilitação e trabalhar com reabilitadores, com assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras, neurologistas, etc. É preciso olhar para o tratamento da dor desta maneira, se não o fizermos estamos a tratar mal..E como se deve tratar a dor?.É tentar tratá-la nestes âmbitos todos. Tentar tirar a dor física, mas também tentar fazer um trabalho com o doente para que seja ativo no seu tratamento. Doentes que chegam ao médico e dizem "aqui me queres aqui me tens" estão a falhar também. No tratamento da dor a relação entre médico e doente deve ser uma relação muito próxima, porque normalmente são relações longas. E este trabalho proativo tem de existir para se tentar diminuir a dor física. É preciso ensinar o doente a gerir e a enquadrar a dor. Por vezes, é preciso que reequacionem as suas vidas. E é preciso também dar-lhes novas aptidões para o tratamento, como acupunctura, hipnose, mind fulness. Todas estas aptidões ou técnicas são complementares. Não são para todos os doentes, mas para alguns são importantes. Nada disto são panaceias..Dor neuropática é a que mais preocupa.Há uma terapêutica para cada dor?.Diria que sim, existem várias classes de medicamentos e de terapias. Nem toda a dor é para tratar com medicamentos. Depende da dor do doente. O que mais nos interessa é o doente que tem uma dor neuropática, porque é a dor que vem de um nervo, de uma inflamação. É a dor mais difícil de tratar, a de maior desespero, por ser a que condiciona mais o doente. A dor neuropática é aquela que tem de ser tratada com medicamentos, que habitualmente não são usados para a dor normal. E nós, técnicos, temos de identificar isso..E há vários tipos de dor?.Há. O doente que tem uma dor abdominal porque tem uma dor de estômago é muito diferente de um doente que tem uma dor numa articulação ou que tem uma artrose. É muito importante identificar que quadro é que temos à frente e que tipo de dor tem o doente. Isso implica estratégias diferentes para a tratar..Mas afinal o que é a dor crónica?.A dor crónica define-se como a dor que se prolonga para além dos seis meses. É uma definição muito simplista, mas imagine que temos uma dor lombar e que durante três semanas nos atira para uma cama. Depois fica bem, depois a dor regressa. A dor não tem de ser contínua, diariamente, quando falamos em seis meses pode ser por períodos, mas é uma dor com características que nos faz pensar que não se vai embora. Se não a controlarmos, não vai mesmo. Às vezes, os médicos conseguem prever que vai ser dor crónica, outras vezes não..A dor crónica, como a lombalgia ou a enxaqueca, é motivo para uma ida à urgência?.A urgência da medicina é sempre diferente da urgência do doente. Para um doente que sofre de dor, esta é sempre motivo para uma urgência. Para a medicina a dor pode ser uma urgência, mas nunca é uma emergência. A não ser que a dor signifique pré-morte. Uma dor no coração, por exemplo, pode ser. Sabemos que o enfarte mata, mas uma dor que não esteja associada a uma doença potencialmente maligna não é uma urgência para a medicina, embora se perceba que para o doente seja. Depois há outra coisa, 15% a 20% dos doentes são refratários e nós temos muita dificuldade em aliviar-lhes o sofrimento, mesmo com tudo o que usamos e fazemos. Há casos assim e são os mais tristes. Não vamos dizer que somos capazes de tratar todos os doentes, porque não somos. O que os técnicos mais querem é que a pessoa seja capaz de retomar a sua vida o melhor possível, não que não tenha uma única dor. O objetivo é que a pessoa seja capaz de ter uma vida feliz, capaz de fazer coisas e que não diga: "Ai, não tenho dor nenhuma.".Da dor no peito à dor de burro.Quando se tem dor no peito o que se deve fazer?.Há dois tipos de dor que se confundem muito. Uma é a dor cardíaca, outra a dor da ansiedade. Muitas vezes a ansiedade traduz-se por uma dor no peito e falta de ar. Só que é preciso distinguir isso da dor no peito que é cardíaca. É uma dor muito específica, o doente sente que vai morrer, que obriga o doente a parar. É uma dor que pode ter irradiação para um braço, para as costas, ou não. Muitas vezes o doente pode até ter a sensação de desmaio e vómito, mas quando não sente nada disto é porque não é uma dor cardíaca. Mas o doente não consegue identificar isso. Portanto, quando tem uma dor súbita no peito, intensa, que vem do nada, e sem razão alguma, deve procurar assistência médica rápida ou um acesso rápido para o hospital, como chamar uma ambulância, porque o doente não é capaz de identificar uma dor de ansiedade de uma dor cardíaca. Só os médicos são capazes..A dor de burro tantas vezes referida pelas pessoas existe?.A dor de burro não tem significado. Está associada ao exercício físico. A verdadeira dor de burro é aquela que surge quando a pessoa corre e a dor instala-se do lado contrário do apêndice. Normalmente, a dor de burro surge porque os músculos começam a trabalhar e produzem ácido láctico. O ácido provoca dor, se a pessoa parar, a dor desaparece, sem quaisquer consequências..Qual é a dor mais frequente?.A dor mais frequente em Portugal são as dores relacionadas com a dor músculoesquelética. Por exemplo, as dores de costas, a chamada lombalgia, as dores de articulações e das artroses, as doenças musculares e a artrite reumatoide, olúpus, a fibromialgia. Depois temos as dores oncológicas..A dor oncológica é diferente das outras?.A dor oncológica é a que está associada a uma neoplasia e pode surgir antes de o doente ser tratado, durante ou depois. Por exemplo, as neoplasias da boca muitas vezes dão logo dor, é como uma úlcera. Outra é o doente não ter dor alguma, mesmo depois de o tumor estar identificado. Outra ainda é quando a dor aparece associada aos tratamentos, quer pela cirurgia, pela rádio ou quimioterapia. Depois, há a dor do tumor a crescer, a dor do tumor metastizado. Em qualquer fase da doença o doente pode ter dor. Naturalmente que a dor é mais severa e mais prevalente nos doentes que estão a morrer de cancro, mas existem muitas pessoas que vivem com cancro e com dor. Isto porque há cada vez mais cancro e porque há também cada vez mais sobreviventes do cancro. Vamos ter cada vez mais doentes que se livraram do cancro, mas que ficaram com uma dor para o resto da vida. O desafio na área da oncologia é este: tratar a dor nos sobreviventes..Como é que se trata essa dor oncológica?.As estratégias para tratar a dor nestes doentes são as mesmas que para os outros doentes, mas há uma característica específica nestes doentes. É que o doente oncológico que está na fase ativa da doença pode ter dores muito incapacitantes. Há fármacos que usamos nestes doentes e que não o fazemos em outro tipo de dor, como a morfina e os opioides, porque são muito potentes. Há que ter muito cuidado com a utilização da morfina e dos opioides. Nos EUA vive-se um drama e uma pandemia no abuso de opioides, pessoas morrem diariamente. Mas há que ter cuidado na sua utilização, mas a oncologia caracteriza-se um bocadinho pela severidade na dor e somos obrigados a usá-la quando a dor ainda é muito ativa..Há 40 anos que o IPO tem uma unidade para tratar a dor. Quais são os desafios?.A consulta foi criada a partir da casmurrice do Dr. Luís Portela e do Dr. Chichorro, que já faleceu, um anestesista e um neurologista. E esta consulta nasce logo com a noção de que era preciso unir todos os esforços diferentes para tratar as pessoas. E foi assim que começou, numa fase em que tudo isto, ou o tratamento da dor, era pioneiro. Ao longo dos anos fomos sendo uma referência para as pessoas. Tínhamos muito que aprender, mas agora temos as nossas dificuldades. A crise, o que aconteceu em termos económicos ao país, foi muito importante. Voltámos só a pensar na sobrevivência e delapidámos todos os nossos recursos para a qualidade de vida. E, neste momento, temos poucos recursos humanos. Não é que não haja pessoas com vontade, só que somos muito poucos e é muito desgastante. Somos poucos com uma missão muito forte..Dores diferentes para homens e mulheres.Há uma dor que ataca mais os homens e outra as mulheres?.Há. Por exemplo, a fibromialgia ataca muito mais as mulheres do que os homens. É muito raro atingir um homem. A dor ginecológica só afeta as mulheres. Há imensas jovens que têm sempre dor durante o período de menstruação e que são obrigadas a tomar anti-inflamatórios. Isto é uma dor crónica das mulheres. É uma fragilidade orgânica das mulheres e uma fonte de possibilidades de dor muito grande. As mulheres têm ainda outra coisa frequentemente: doenças autoimunes, artrite reumatoide, lúpus. São doenças geradoras de dor. Por isto, se calhar, podemos dizer que as mulheres têm maior probabilidade de ter dor do que os homens, porque têm muitas fragilidades do seu próprio organismo. Os homens têm mais a dor dos traumatismos..Quando se tem sintomas de dor o que se deve fazer?.Quando uma pessoa tem uma dor frequente deve recorrer ao seu médico. Deve evitar automedicar-se. O que não quer dizer que quando tem uma dor não tome um paracetamol. É uma coisa que todos nós fazemos e não vejo mal nisso, mas quando se toma sete vezes ao dia, não respeitando o intervalo de outros medicamentos, é preciso ter cuidado. Há coisas que o doente toma e que podem colocar a sua vida em risco - o paracetamol quando não é respeitado é perigoso e os anti-inflamatórios destroem os rins - por isso, deve ir ao médico. A dor muitas vezes significa doença e há que perceber de onde vem e o que significa..O que se pode fazer para evitar a dor?.Por exemplo, melhorar a atividade física. O ser humano nasceu para caminhar, aos nove meses ou um ano, andamos. É uma característica do ser humano, mas quando nos tornamos adultos andamos cada vez menos. É uma aptidão natural da qual estamos a abdicar. E isso destrói a nossa massa muscular, que é o que mantém o nosso esqueleto. E porque é que as pessoas têm dor? Porque não andam, não caminham, não dançam - a dança existe desde que há gravuras nas cavernas. Olhamos para os nossos avós, que era uma geração que andava, e percebemos que duram até aos 80 ou 90 anos. Temos de fazer o mesmo. O sedentarismo não dá só cabo da diabetes, dá também cabo do nosso organismo, dos músculos, das articulações, dos ligamentos. E isso gera dor. A dor lombar é a mais frequente por isso mesmo. Como é que se protege isso? Com exercício, mas este deve ser prescrito, porque um doente que tenha dor não pode fazer qualquer exercício. O movimento, sim. Todos podemos fazer. Não há um médico que possa dizer que a pessoa não pode andar. Todos podemos andar, dançar, mergulhar na piscina e dar umas braçadas. Isto é o que a Associação para o Estudo da Dor (APED) quer fazer. Ou seja, sensibilizar as pessoas para o facto de que não temos de proteger só o coração, temos de proteger o físico e o cérebro, que também são fundamentais. É o voltarmos a ser humanos.