Dois tratados sobre a coerência
1. Aqui vão algumas palavras para afastar leitores: descentralização, juntas metropolitanas, CCDR (traduzo: Comissões de Coordenação de Desenvolvimento Regional). Chegou aqui? Então talvez as linhas seguintes lhe mereçam atenção. Aqui vai.
António Costa anda há ano e meio com uma ideia, que pelos vistos sairá da gaveta nas próximas semanas. É um "pacote legislativo" de descentralização de poderes para as câmaras, mais um reforço das ditas CCDR e ainda a eleição de dois superautarcas, que supostamente vão mandar em tudo quanto é cooperação entre municípios vizinhos, na Grande Lisboa e no Grande Porto.
Se tudo correr como o governo espera, estes dois superautarcas vão sobrepor-se naturalmente aos presidentes das câmaras, mas também às CCDR e até (aviso: sigla a caminho) às famosas CIM, uma invenção de Miguel Relvas ao tempo de Durão Barroso, que juntou autarquias em organizações que era suposto capitalizar recursos.
Agora entramos na parte 2 da história. O governo que quer reforçar as juntas metropolitanas, que deseja aumentar o poder das CCRD, que quer prescindir de poderes para as autarquias, é o mesmo que demite dois presidentes de CCDR porque estes (imagine-se a afronta) fizeram uma distribuição de fundos comunitários pelos municípios autonomamente, como diz a lei, sem respeitar a ordem em contrário do ministro da tutela.
Isto porque o Porto e outras tantas autarquias poderosas do Norte pediram audiências ao ministério, reclamaram mais dinheiro e o governo acedeu. Não fosse a manta curta e era tudo muito simples: dava-se mais a uns e os outros ficavam na mesma. Mas a manta é curta, não é?
E, afinal de contas, o que quer o governo: prescindir do poder ou ficar com ele?
Nem de propósito, nesta semana tive de passar por Lousada. E ouvi o presidente da CIM do Tâmega e Sousa a reclamar com o ministro da Economia, já adivinhando que estes 11 concelhos acabarão prejudicados com a decisão do governo. Do mesmo governo que, em paralelo, pediu um estudo independente sobre como combater a interioridade, garantindo que "é desta" que a coisa muda. A mim, estes estudos e promessas parecem-me sempre conversa para campanha no interior.
Porém, como não sou autoridade na matéria, pedi a opinião ao economista Daniel Bessa, a quem outro governo, há uns 13 anos, lhe pediu para fazer um diagnóstico igual. E respondeu ele: "Daí para cá, quase nada mudou", nem no Tâmega nem no país.
Tenho dúvidas, muitas dúvidas, de que alguém tenha mesmo a vontade genuína de descentralizar o país. Governo após governo, ano após ano, o que mais vejo é vontade de mandar de cima, para manter o país sob controlo - o país que se faz ouvir, pois claro.
Houve um tempo em que o país debateu e votou a regionalização. Nesse tempo, Marcelo Rebelo de Sousa era líder do PSD e exigiu um referendo sobre a matéria, dizendo que votaria contra porque o projeto era uma confusão. Gostava de saber o que pensa sobre tudo isto o agora Presidente. Mas infelizmente nem sobre a demissão do presidente da CCDR ele se quis pronunciar.
2. Tudo o que se está a passar a propósito da Caixa Geral de Depósitos era demasiado previsível. O governo quis (e bem) ir buscar um gestor de topo, mas ele exigiu ganhar mais. O governo aceitou (e bem), pondo fim aos limites salariais impostos pela legislação de Passos Coelho, que amarraram as mãos da administração atual. Mas depois vieram os trabalhadores: "Se vale para a administração, também vale para nós." E vai daí o governo acaba com o congelamento de carreiras e nomeações na CGD, ao mesmo tempo que põe fim aos cortes salariais dos trabalhadores.
Tudo isto seria perfeitamente lógico e legítimo, não fosse o facto de acontecer no momento em que o governo está a negociar com a Europa uma profunda reestruturação da CGD, que terá de passar pelo despedimento de muita gente, pelo fecho de balcões e pela venda de ativos (se é que não passa pelo acionar de muito crédito que por lá anda malparado).
Tudo isto seria também lógico e legítimo se não existissem outras empresas do Estado que ainda têm parte do salário cortado e as mesmas dificuldades internas que tem a CGD - basta pensarmos na RTP ou na agência Lusa. E, claro, o próximo passo vai ser ouvi-las protestar que ou há pão para todos ou não há pão para ninguém.
Tudo isto seria até perfeito se o Bloco e o PCP não fossem contra salários milionários no Estado - podendo até juntar-se à direita e, no limite, travar a legislação que o governo agora aprovou. O que teria por consequência... que a nova administração da Caixa já não entrava em funções.
Imagino que ele esteja atento, mas aqui está mais uma missão para João Nuno Santos, o secretário de Estado que no Parlamento tem de andar a resolver os problemas que estão sempre a aparecer.
Boa sorte, caro secretário de Estado. Veja bem, já lá vão seis meses.