Dois tipos de paraíso

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Nesta semana, fui contactada pela enésima vez por um jornalista estrangeiro que queria realizar entrevistas e visitas para elaborar um relatório sobre a experiência de Portugal com a descriminalização de drogas ilícitas.

Ao longo dos anos, o assunto tem vindo a formar uma grande parte da imagem que as pessoas têm de Portugal no resto do mundo, numa dimensão muito maior do que a maioria dos portugueses imagina.

Uma pesquisa online em inglês pelas palavras "Portugal" e "reforma" faz aparecer dezenas de milhões de notícias e posts sobre a austeridade e o resgate da zona euro, mas geralmente há pelo menos um item sobre política de drogas na primeira página. E uma pesquisa pelas três palavras "Portugal", "lei" e "reforma" (ainda sem a palavra "drogas") não deixa dúvidas: a descriminalização da droga pelo país obteve uma cobertura enorme.

Mesmo antes de a mudança entrar em vigor em 2001, ela desencadeou um interesse imenso, particularmente noutros países europeus, muitos dos quais - cada um à sua maneira - suavizaram as suas leis sobre drogas ou as orientações para a polícia ao implementá-las.

Na época, no entanto, houve alguma ruidosa oposição interna à reforma. Paulo Portas, então no seu primeiro mandato como líder do CDS-PP, foi citado em jornais de todo o mundo dizendo que Portugal agora "promete sol, praias e qualquer droga que se quiser" e que "aviões carregados" de turistas em busca de emoções ilícitas aterrariam no país.

Acusado pelo governo socialista de "irresponsabilidade" e questionado pelo Público sobre os comentários - que foram feitos a um repórter do The Times que cobriu a história numa visita-relâmpago -, Portas recusou-se a recuar no que tinha dito. Mais, ele disse à BBC que temia que Portugal se tornasse um "paraíso para os toxicodependentes".

No entanto, em pouco tempo estava a evitar ativamente o assunto. Acompanhado pela BBC até ao Mercado de Olivais Sul durante a campanha para as eleições legislativas de março de 2002, ele estava claramente determinado a não dizer nada de controverso.

Quer por que acreditasse que a linha dura perderia mais votos do que ganharia quer por pressão interna do seu círculo social no que é, afinal, um país pequeno, o facto é que Portas nunca mais deixou escapar outra declaração sobre o assunto que pudesse fazer manchete.

Na altura, o PSD pensou claramente que havia um apoio público significativo para a reversão da despenalização: na mesma campanha eleitoral prometeu revogar a lei se ganhasse as eleições. Mas, quando chegou ao poder, deixou cair discretamente a ideia, deixando o Instituto de Drogas e Toxicodependência (IDT) implementar a reforma e as políticas relacionadas em paz.

Fernando Negrão, o ex-diretor nacional da PJ, que foi a escolha do novo governo para dirigir o IDT, resumiu: "Havia receios de que Portugal se pudesse tornar um paraíso da droga, mas isso simplesmente não aconteceu".

Durante alguns anos não havia dados suficientes disponíveis sobre os resultados da reforma, impedindo os visitantes de a avaliar. Mas o marcante relatório de 2009 do Instituto Cato de Washington resultou num renovado interesse pela experiência com a droga em Portugal, especialmente nos EUA, e, alguns anos depois, no 10.º aniversário da reforma, houve mais uma profusão de cobertura do tema.

Nessa altura havia já uma quantidade razoável de dados disponíveis, tornando possíveis avaliações mais objetivas. Mas, mesmo nessa data, o que impressionou os repórteres que perguntavam às pessoas em Portugal se concordavam com a lei foi a quantidade delas que nem sequer sabiam que ela tinha mudado, nem como.

Passada uma década, mesmo muitos toxicodependentes que tinham contacto regular com a polícia ainda não sabiam que não podiam ser criminalmente acusados simplesmente por possuir ou usar pequenas quantidades de droga.

Hoje, países de todo o mundo continuam a lidar com os seus próprios problemas de drogas e Portugal aparece em quase todos os debates políticos. É condenado por alguns, mas santificado por outros: no ano passado foi o tema central de um episódio de uma série de rádio da BBC chamada My Perfect Country (O Meu País Perfeito).

Quase duas décadas após a reforma, Portugal não se tornou conhecido como um paraíso da droga da forma como alguns previam. Em vez disso, é mesmo, para muitos, um "país perfeito" na forma como lida com ela.

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