Dois terços dos trabalhadores já estarão a perder poder de compra

Milhões de ordenados sobem bem mais devagar do que a inflação no primeiro trimestre desde ano. Mas emprego acelera e o desemprego continua a cair, confirmou o INE.
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Dois terços dos trabalhadores por conta de outrem (TCO) em Portugal já estarão a perder poder de compra salarial, indicam cálculos do Dinheiro Vivo com base nos novos dados do Inquérito ao Emprego e da inflação do primeiro trimestre, ambos divulgados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).

O salário médio líquido praticado na economia subiu 4,3% no primeiro trimestre, para 1024 euros, mas a inflação homóloga média do primeiro trimestre já comeu todo esse ganho já que os preços avançaram, em média, 4,3% nesse mesmo período comparativamente ao primeiro trimestre de 2021.

Considerando, por hipótese uma inflação como a de abril (7,2%), significa que a manter-se essa progressão salarial (está na casa dos 4% há dois trimestres consecutivos), a perda de poder de compra dos ordenados alastra, claro. Pode superar os 80% do universo de empregados por conta de outrem, se assumirmos esses parâmetros.

Com uma inflação média de 4,3%, isso significa que o salário médio líquido estagnou no primeiro trimestre, algo que não acontecia desde o início de 2014, estava Portugal ainda sob o programa de ajustamento do governo PSD-CDS e da troika.

Claro que uma média esconde realidades diferentes. A estagnação real dos salários em Portugal é sobretudo explicada pela subida muito fraca (apenas 0,1% no primeiro trimestre de 2022) do salário líquido do grupo profissional "Especialistas das atividades intelectuais e científicas".

É aqui que está a maioria dos profissionais de educação e saúde, incluindo os do setor público. É o maior grupo profissional, de acordo com a classificação usada pelo INE, e conta com 1,2 milhões de trabalhadores altamente qualificados. Representa quase 25% da força de trabalho por conta de outrem portuguesa.

Recorde-se que boa parte dos funcionários públicos teve uma atualização salarial de 0,9% (em vigor desde janeiro), mas acabou por se confrontar, em simultâneo, com uma subida muito rápida da inflação neste arranque de ano.

As pressões inflacionistas já vinham de 2021, com o congestionamento e o aumento dos custos de muitas matérias-primas alimentares. Mas, desde finais de fevereiro, que a situação se agravou de forma dramática por causa da guerra da Rússia contra a Ucrânia, que fez disparar os preços da energia.

No primeiro trimestre, o referido avanço médio de 0,1% nos salários dos "especialistas das atividades intelectuais e científicas" foi mais do que corroído pela inflação e a perda de poder de compra poderá ter superado mesmo os 4%. É o pior caso dos analisados, cujo salário médio se fixou em 1380 euros mensais nos primeiros três meses.

Além de professores, médicos, enfermeiros e outros especialistas, há outras profissões debaixo do fogo inflacionista.

Os quase 600 mil "trabalhadores qualificados da indústria e construção" podem ter sofrido uma quebra salarial líquida real superior a 1,4%, porque o salário médio correspondente avançou menos do que o índice de preços. O ordenado médio deste grupo subiu 2,9%, para 826 euros mensais.

Outro grupo de dimensão muito relevante na economia é o dos "técnicos e profissões de nível intermédio". Existem nesta categoria cerca de 625 mil pessoas. Aqui, o salário médio subiu 3,3%, para 1083 euros, mas ficou curto para superar a inflação até março. Aqui, a quebra de poder de compra ronda 1%.

A classe profissional "pessoal administrativo" conta com 500 mil profissionais. Teve uma atualização salarial de 3,5%, fixando o respetivo salário médio nos 831 euros líquidos mensais. De novo, a perda de poder de compra materializou-se, podendo estar perto de 1%.

Somando todos os grupos profissionais cuja variação do ordenado médio ficou aquém da inflação, temos que em Portugal quase 3,3 milhões de pessoas pertencem ao universo onde a atualização salarial média não chega para cobrir a inflação. Perdeu poder de compra. Dá os tais 66% do total de TCO.

Mais emprego, salários baixos

O INE mostra que a maioria dos salários parece não estar a acompanhar as pressões inflacionistas e isso pode estar a ajudar a criar empregos, seguindo um mecanismo de transmissão clássico da economia. Da mesma forma, o desemprego também está a descer bem.

A taxa de desemprego portuguesa caiu para 5,9% da população ativa no primeiro trimestre deste ano, um dos valores mais baixos em mais de uma década, revelou o INE no inquérito ao emprego relativo aos primeiros três meses de 2022.

"A taxa de desemprego foi estimada em 5,9%, valor inferior em 0,4 pontos percentuais (p.p.) ao do 4.º trimestre de 2021", refere o INE, acrescentando que o valor divulgado também ficou 1,2 pontos percentuais abaixo face ao registo no 1.º trimestre do ano passado, período em que a incidência do desemprego afetou 7,1% dos ativos.

Nessa altura, o país estava na fase mais violenta da pandemia covid-19 e as medidas de confinamento e de restrição aos negócios eram muito duras. Isso ajuda a explicar a forte redução na taxa e no número absoluto de desempregados.

Assim, em termos absolutos, Portugal terá agora, oficialmente, cerca de 308,4 mil pessoas desempregadas, um contingente que diminuiu 6,7% (menos 22,2 mil casos) em relação ao trimestre anterior e que caiu 14,3% (51,7 mil) relativamente ao homólogo.

Nestas séries do INE, que começam no início de 2011, a taxa de desemprego só foi mais baixa no segundo trimestre de 2020 (5,7%), em plena pandemia, mas nessa altura grande parte da população deixou pura e simplesmente de se classificar como desempregada, porque não podia procurar emprego ou não havia negócios abertos ou à procura.

A economia também mostrou força na criação de emprego. Subiu 4,7% (mais 219,3 mil empregos) relativamente ao mesmo período de 2021, o segundo avanço mais forte destas séries do INE.

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