Dois filmes para redescobrir a América de Sam Shepard
Há poucas semanas, quando o dramaturgo americano Sam Shepard morreu (27 de julho, contava 73 anos), é bem provável que alguns espectadores tivessem ficado surpreendidos com a evocação da vasta dimensão da sua filmografia.
Na verdade, quer como argumentista quer como ator, Shepard manteve uma relação regular com o cinema, não sendo abusivo considerar que o seu trabalho teatral está fortemente contaminado pelo imaginário de Hollywood.
Daí a oportunidade da pequena mas sugestiva homenagem proposta pelo cinema Monumental, em Lisboa, exibindo dois títulos fundamentais na sua trajetória cinematográfica: hoje, 15 de agosto, será projetado Paris, Texas (1984), de Wim Wenders; amanhã é a vez de Dias do Paraíso (1978), de Terrence Malick.
Para além de ser um dos filmes menos conhecidos de Malick, Dias do Paraíso pode ser tomado como um reflexo exemplar das convulsões temáticas e simbólicas que marcaram a produção americana das décadas de 60-70.
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O seu retrato de uma quinta no Texas no começo do século XX envolve não apenas a interrogação das bases clássicas do western (tema então transversal na produção de Hollywood) mas também uma abordagem dos elementos naturais, a meio caminho entre o realismo e a tragédia, que se viria a revelar cada vez mais importante na evolução de Malick.
Essenciais eram, por isso, as imagens assinadas por Nestor Almendros que, aliás, viria a receber o Óscar de melhor fotografia. No elenco, Shepard assume uma das personagens principais, contracenando com Richard Gere (que, dois anos mais tarde, se tornaria uma estrela graças a American Gigolo, sob a direção de Paul Schrader), Brooke Adams e Linda Manz (esta com apenas 15 anos).
Paris, Texas é, obviamente, um filme muito mais visto e celebrado. A sua Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1984 consagrou internacionalmente o nome de Wenders (que, na altura, já tinha assinado, por exemplo, Ao Correr do Tempo, O Amigo Americano e O Estado das Coisas) e, mais do que isso, um novo "romantismo" enraizado numa metódica reavaliação das raízes mitológicas dos EUA.
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Em tal processo, o argumento - cuja autoria Shepard partilhava com o escritor L. M. Kit Carson - era uma peça decisiva. A odisseia do par interpretado por Nastassja Kinski e Harry Dean Stanton correspondia a uma desencantada revisão das linhas dramáticas do clássico melodrama familiar. Nessa revisão, era a imagem da própria América enquanto utopia familiar que vacilava, confrontando-se com os seus medos e ilusões - esse foi, afinal, um tema de toda a obra de Shepard.