Dois Carlos pelo mapa de África
A história podia ser cronológica. De como tiveram a ideia, o pai queria viajar, o filho propôs a América Latina e um continente inteiro, o pai respondeu África, que o filho conhecia até Dakar, do projeto «Até onde vais com mil euros». De como encontraram a «catrela» na internet, cansada de 270 mil quilómetros de vida na Quinta da Bacalhôa, primeiro a transportar engenheiros na vinha, depois gasóleo, por fim trabalhadores em pausa para a cerveja ou mesmo a fazer um rali que acabou numa ribanceira. De como deram 750 euros por ela, a eleita, porque é «o jipe dos pobres» a que nenhum mecânico africano torceria o nariz, a que não faltariam chips e outras eletrónicas medonhas. De como gastaram, tudo contado, 1800 euros por mês. De como foram para a serra da Arrábida filmar o vídeo promocional da coisa e acabaram a adiá-la três meses, à coisa, porque Carlos pai partiu um pé nas encostas. Mas não. Essa cronologia está no site nuncaetarde.com que foram alimentando à medida das redes possíveis e que Mariana, a irmã ficada em terra, ia injetando no ciberespaço. A história é, sobretudo, a de um pai e de um filho habituados à vida de pai e filho distanciados pela vida, casal separado, almoços semanais - «Dávamos-nos bem, mas não era unha com carne» -, o filho cedo emancipado que, depois de atirar o diploma de Jornalismo às urtigas, acabou a perceber a beleza da vida em culturas alheias graças à fábrica de salsichas britânica onde foi ganhar os primeiros trocos.
«Não se conhece a vida dentro das nossas fronteiras. Para nos enriquecermos a nós próprios temos de sair delas, ir a outras civilizações.» É Carlos pai quem fala, a visão de um confunde-se com a vida do outro, quem sai aos seus não degenera. Carlos filho fez-se guia free-lancer a conduzir grupos de portugueses pelo mundo fora. Carlos pai, engenheiro e homem de fato e gravata, fez-se homem na guerra colonial, em Angola, e viajante profissional na engenharia, com currículo em Moçambique e em Marrocos, para falarmos apenas de África. Mas de camisa e gravata, sempre, até quando foi de férias até ao Tibete, não fosse o diabo tecê-las. O que nos conduz a uma graçola, contada pelo filho: chegado à casa fechada havia perto de um ano, o pai descobriu que não sabia como deixara a vida de antes. «Não sabia ligar a televisão.» Procurou uma camisa limpa. E procurou. E mais. Até encontrar duas, «rotas das traças». Tinha mais, procurou. Estavam no estendal, a secar havia onze meses e dez dias... Foi fácil partir sem as gravatas, para um périplo com mais noites de relento que de hotel, ele que nunca acampara nem nunca dormira numa aldeia de palhotas? «Não tem nada de especial. É só querer ir.» Mudou, Carlos pai. Veio mais novo. Mais magro dez quilos. Dormir na tenda trouxe-lhe a África profunda, das aldeias e dos desertos, «a que é verdadeira». Olhar África desde a baixa e minúscula janela aberta da «catrela» trouxe-lhe a África descolonizada, a África retalhada artificialmente que as tribos nem sempre aceitam, a África unida, afinal, pelas nações do futebol.
Arrancaram. Ao desconhecido. E tiveram de se adaptar. Às agruras da viagem. Às agruras de África. Às agruras de uma África a dois, sem mulheres a amainar os ânimos. Quer dizer, com uma, «a carra», o raio da «catrela» do mau acordar. Mas essa não ouvia os palavrões que Carlos pai, habitualmente sereno e contido, debitava quando a mostarda se lhe subia ao nariz - que é como quem diz, quando o raio da «gaja» avariava -, ele que ficou mesmo mais novo, até na contenção. Uma insensível, a «catrela». Diz-nos Carlos filho que amadureceu, talvez fruto da sabedoria das cãs paternais, essas que impunham respeito onde quer que chegassem. Menos em Dar es Salaam, capital financeira da Tanzânia, onde foi assaltado quando, mente turvada pela malária, decidiu ir levantar dinheiro sozinho para não incomodar o filho - um pai é sempre um pai, ora bem. Já terão tido o seu peso em Bamako, no Mali. Foi à internet de manhã cedinho, a viagem ainda ia no primeiro terço, os vícios não se tinham desfeito. Oito horas depois não voltara. «Achámos que andava a passear, a beber uns copos.» Nada. Perdera-se no imbricado regresso ao «lar», uma casa familiar igual a todas as outras de uma cidade africana. Um vidente da Costa do Marfim encantou-se com o branco com ar de chefe de tribo e levou-o a uma emissora de rádio, para fazer apelos em três línguas locais. Do alto da sua sabedoria paternal, o engenheiro deu por si a recordar a Figueira da Foz da infância, em que os megafones da praia chamavam pelos pais de crianças perdidas. Debalde. Até que alguém apercebeu Carlos filho e Pedro, o tal terceiro homem que fez parte da viagem com os Almeida Carneiro, e disse que tinha visto um branco com um vidente.
A viagem fez-se destas pequenas coisas, mais do que de quilómetros. Fez-se do diabo dos tacos de golfe que o pai fez questão de levar, não fosse o deserto dar-lhe o desejo de plantar um tee e visar um buraco imaginário. Usou-o uma vez, numa aldeia burkinabé, entre putos alucinados a correr atrás das bolas. Mas não chegou a tocar no peso e nos alteres, roubados a meio do caminho com o saco de pesca que também insistiu em emalar. A viagem fez-se também da precoce divisão de tarefas - havia uns largos meses de convívio a aguentar pela frente -, Carlos pai foi eleito chefe de tribo, para trabalhar dera setenta anos de vida para trás, a vez era agora dos jovens. Carlos filho admite que fez a «redescoberta do pai enquanto companheiro de viagem», porque havia uma história conjunta muito antiga, já numa 4L, até ao Marrocos onde o engenheiro trabalhava. «O giro de viajar com um pai é que se fica a conhecer muito melhor o nosso país», porque são centenas as horas de calma que é preciso preencher à volta das fogueiras e são outras tantas as histórias de quando Carlos ainda não era pai e Carlos nem sequer existia como filho. «É uma viagem a ti próprio, à tua vida, aos problemas nunca discutidos quando eras miúdo.» Quanto ao pai, o filho conta que o ouve queixar-se de estar, agora, «em prisão domiciliária», detido pela papelada atrasada um ano.
«É que uma pessoa vem completamente esquecida, porque viveu tão intensamente durante um ano, dia a dia, a resolver problemas e a ver gente e mais gente e depois chega a um país que é excessivamente regulamentado... é difícil reentrar nos hábitos.» Na vida que sempre Carlos pai teve até há um ano, em suma. Uma vida presa. «Em África sentia-me completamente livre. Nem os vistos me condicionavam...»
E sabe-se lá o trabalho que deram, os malandros. Na memória, o de Angola e o mês que foram obrigados a ficar à espera em Kinshasa, aquela que «tem tudo para ser a cidade mais sinistra de África». A «África feia» acabou por ser marcante. Pelas pessoas. Por terem ficado a dormir numa dependência da Embaixada de Portugal durante três semanas. Pela receção a que a caprichosa «catrela», achacada por uma enxaqueca por ter bebido «gasolina marada» em excesso, foi levada por uma corda até ao general do corpo pessoal de Kabila. Pela descoberta: um patrocinador inesperado, português espantado por ver uma 4L com matrícula nacional em frente a um hotel numa cidade má, convidou os Almeida Carneiro para almoçar e ajudou-os a resolver mais uma das dores menstruais da «catrela». No fim, quis ofereceu uns cobres para a gasolina. O negócio saldou-se com um patrocínio, uma amizade celebrada com a mudança da meta da viagem - seria em Santa Comba Dão - e a garantia de um futuro para a «carra». Seguiu-se Angola e outro dos momentos marcantes do périplo. Não por Angola nem por Luanda. Antes pelo acaso. Mário, português de Azeitão e homem-forte de um restaurante na marina, apercebeu a «catrela» nas notícias. Moveu mundos e fundos para arranjar forma de contactar os Carlos, que acabaram a pernoitar num pequeno paraíso, junto aos iates.
E houve tantas outras surpresas... A Etiópia orgulhosa e sem marcas de fome, uma «ilha sem mar» por que Carlos filho se apaixonou de tal forma que fez dela o destino da próxima viagem guiada. Ou a Líbia, onde terão sido dos primeiros a aventurar-se num deserto destituído do seu Kadhafi. «Estavam tão contentes que nos davam gasolina de graça. Abordei um rapaz para trocar uns dólares, ele deu-me muito mais do que valiam e no fim... devolveu-me os dólares», conta o pai, ainda admirado com o mundo «espantoso» que ali encontrou. Não, não terá sido um 25 de Abril à moda de lá. Porque foi o contrário, «foram as pessoas que pegaram nas armas e foram à rua afastar os militares. Se não fosse a ajuda da NATO, teriam sido chacinados». O filho é claro: a Líbia foi o país mais acolhedor. Como não viveu o 25 de Abril, ousa comparar. «Deve ser aquela sensação de que falam... o histerismo. Acabaram de morrer cinquenta mil pessoas e todas as fotografias que tenho é de gente a fazer V.» Ou o diabo da «catrela», que resolveu mesmo amuar entre o Norte do Quénia e o Sudão. De manhã, era invariável, não ia lá sem empurrão. Umas cinquenta vezes. A solução, encontrada no Facebook em resposta ao desespero da equipa, era, só, fazer-lhe uns mimos. «Duas marteladas por baixo...» Chegou, a mimalha, firme e hirta, naquele glorioso 10 de maio. E regada com tinto.
«No início, África pede muita energia. Aguentar aquilo, a "catrela", há sempre um buraco, uma cabra...» Carlos filho é profissional da estrada. Sabe que o risco de explosão fica ali, no finalzinho do segundo terço, quando uma pequena discussão pode degenerar. Tiveram uma, os Carlos. «Se calhar precisávamos. Depois correu bem.» Começaram «a respirar melhor» e passaram imensas horas a conversar. «Foi aí que percebi que estava a viajar com o meu pai de 70 anos e que perdera aquele medo do "será que vai correr mal?"»
«Deprimido não ando, mas ando a fazer um esforço.» O engenheiro admite que vai precisar de «umas semanitas». Até regressar à estrada e ao enriquecimento pessoal. «Parar é morrer mais cedo» e Carlos ainda é novo... O filho, sereno, está na expetativa. «Estou curioso por vê-lo daqui a seis meses e perceber melhor o que mudou. Foi estranho largá-lo em casa...»