Dois anos depois otorrinos voltam a operar no Litoral Alentejano
Pouco passa das 9.30. Nos blocos do hospital do Litoral Alentejano já se opera. Vítor Oliveira, otorrino, e o interno que o acompanha fazem uma cirurgia endoscópica à rinosinusite. Uma operação que não precisa de internamento, mas que, como todas, tem os seus riscos. Ou não fosse estarem os instrumentos tão perto da base do cérebro e do olho. Para o doente é o fim da sinusite. E para o hospital é o início de uma nova era.
Desde que abriu portas, em 2004, a unidade de Santiago do Cacém nunca teve otorrinos no quadro. "Tínhamos um ou dois prestadores de serviço, mas quando fizemos o protocolo não tínhamos nenhum há um mês. Não operávamos há dois anos porque um médico sozinho não o pode fazer", diz ao DN Paulo Espiga, administrador da Unidade Local de Saúde do Litoral Alentejano (ULSLA). No final de 2016 assinou um protocolo com o Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN). Uma vez por semana um otorrino e um interno vão do hospital de Santa Maria a Santiago do Cacém para operar e dar consultas. Há também protocolos para pneumologia, imunohemoterapia e anatomia patológica.
Quarta-feira, dia 22. A estreia de Vítor Oliveira na ULSLA. De manhã operou, à tarde tinha à espera 32 consultas, que dividiu com o interno. O dia é a correr, desde as 09.00 até às 22.00. "Os doentes acabam por não ter um centro de referência fora das grandes cidades, o que tem repercussões nos cuidados de saúde. Faz todo o sentido a nossa colaboração", diz. Aos 66 anos, Manuel Bugalho espera desde 2014 por uma operação para tirar uns pólipos no nariz que agravam as crises de asma e criam infeção. "Os médicos querem todos ficar em Lisboa, não percebo porque aqui têm mais qualidade de vida. Tem-se praia, campo, boa comida. Só falta a fibra! Quando era miúdo dizia-se que Lisboa era a capital e o resto era paisagem. Ainda continua assim", lamenta. Mas, sendo um otimista, confia que é desta que o problema é resolvido.
Desde que o protocolo foi assinado realizaram-se 192 consultas e 33 cirurgias de otorrino. "Santiago do Cacém nunca teve otorrinos. Tem muito a ver com a nossa cultura, as pessoas não querem trabalhar fora dos grandes centros urbanos. Em vez de tentarmos mudar mentalidades, podemos fazer o que temos aqui: uma parte do horário é feito fora de Lisboa. Os doentes ficam muito satisfeitos. Para a população isto é tudo", afirma Leonel Luís, diretor de otorrino de Santa Maria e o primeiro a iniciar o protocolo. E pode ser também a solução para a falta de médicos no interior: "O médico não quer vir e ficar sozinho, mas se souber que vai prestar serviço para Santa Maria se calhar já quer. Tem de haver esta abertura."
Onde tudo começou
O primeiro protocolo foi assinado em 2015 com imunohemoterapia. Um serviço apenas com o diretor que já não chegava para as encomendas. Álvaro Beleza, diretor do de hematologia de Santa Maria, vai todas as semanas com um interno ajudar. Já lá vão 883 consultas desde o acordo. Cristina Gomes é seguida no serviço desde 2016. "Tive uma trombose da veia mesentérica e veia porta", diz, no domínio absoluto dos termos técnicos. "O hospital de Santiago foi a minha salvação. Já tinha ido ao privado e não tinham detetado nada. Só posso dizer bem. A imagem que me tinham passado não corresponde à realidade que encontrei."
A situação é rara e está a fazer anticoagulantes e consultas de rotina para ter a certeza que tudo corre bem. A médica de serviço foi Marina Kovalenko, 49 anos, e à espera do exame para terminar a sua segunda especialidade. Foi o amor que a trouxe para Portugal. Já lá vão dez anos e tem a certeza que irá trabalhar para fora de um grande centro. "Vou para a periferia. Temos mais tempo para os doentes e estamos mais próximos deles, o ambiente é mais familiar. Portugal é pequeno, qualquer sítio é perto de Lisboa", diz quem já trabalhou em Kiev. Sente o carinho dos doentes e já aprendeu quais os melhores doces regionais.
Álvaro Beleza sente-se padrinho do serviço por o ter ajudado a construir quando trabalhou em Évora. "Achei que era importante também para os internos aprenderem com a realidade dos serviços mais pequenos. Gostam porque aprendem sempre qualquer coisa. Têm de ver o dador de sangue, fazer a triagem para transfusões no bloco, urgência. Num grande hospital está tudo separado. Manter a ligação aos centros de referência é aliciante para os médicos. É a maneira de alguns virem para aqui. Cada vez se trabalha mais em rede e só há um SNS", refere, apontando as duas mudanças fundamentais para os protocolos: autoestradas e a era digital.
Inspira, expira
Em dezembro Hélder Fialho, 63 anos, foi à primeira consulta de pneumologia em Santiago do Cacém. O médico de família "detetou que alguma coisa não estava bem" e uma TAC ao tórax identificou uns pequenos quistos que precisam de ser seguidos. Foi o bordado da bata que denunciou a origem do médico: Santa Maria. "Virem fazer serviço para nós é bom. Se tivesse de ir para outro sítio seria um transtorno muito grande. É a segunda vez que venho e é sempre o dr. Miguel. Já é quase como se fosse médico de família", sublinha, antes de descrever os encantos que Santiago tem para convencer os médicos: "É uma área muito abrangente e há muita gente que precisa de cuidados. E aqui também é bom, há sossego e sem filas de trânsito."
Já lá vão 123 consultas de pneumologia desde o protocolo. Mas o trabalho de António Miguel, pneumologista de Santa Maria, não ficará por aqui. "A ideia é desenvolvermos um outro projeto de apoio à doença pulmonar obstrutiva crónica e asma para haver uma gestão de forma mais consolidada e integrada com os cuidados de saúde primários com rastreios respiratórios e telemonitorização", explica. Haverá mais: consultas da especialidade em Odemira e Alcácer, onde, na área de influência do hospital, funcionam os dois centros de saúde mais distantes. No Alentejo encontrou "colegas muito motivados e prontos ajudar para dar resposta ao doente".
O caminho inverso
Em 2006 Pierre Paolo Cussati deixou a Itália para trabalhar no Litoral Alentejano. Ficou impressionado com o equipamento - havia uma máquina que só tinha visto em catálogo - e com a falta de recursos humanos. Dez anos depois continua a ser o único médico de anatomia patológica. Nas quartas-feiras, vai ele fazer trabalho no hospital de Santa Maria. "Estou a recuperar uma parte que tinha perdido. Santa Maria tem um grau de diferenciação muito elevado. No Litoral Alentejano temos técnicas mais básicas, mas é muito interessante trabalhar num hospital periférico. O médico tem de ser mais elástico porque toca em tudo." São estes acordos a solução para conquistar médicos? "No imediato será difícil porque é uma especialidade muito carenciada a nível no global. Mas a prazo acredito que será possível trazer alguns."
Novo acordo para formação
No próximo mês, as duas administrações vão assinar um novo acordo para a formação, que deverá arrancar no início do segundo trimestre. "Teremos uma sala de educação virtual para visionamento de intervenções no bloco, sobretudo de doentes referenciados aqui. Vamos analisar as oportunidades dos profissionais de várias carreiras fazerem formação no nosso centro. Continuaremos a abrir as portas aos profissionais que optem pela ULSLA para fazerem parte do nosso programa doutural, centro académico, de integrarem ensaios clínicos. São este tipo de incentivos que podem fazer a diferença entre um médico vir para uma unidade mais periférica ou ir para o privado", diz Carlos Martins, presidente do conselho de administração do CHLN.
Para Paulo Espiga, presidente da administração da ULSLA, é a solução para um problema que se arrasta desde que o hospital abriu. "Temos tido grandes dificuldades em conseguir médicos. Temos um problema na área de gastroenterologia e na urologia por falta de médicos. Na cardiologista temos um, pneumologistas temos dois que juntos fazem 20 horas, em ginecologia dois médicos prestadores de serviço e em endocrinologia um médico que faz dez horas por semana. Pediatria é um calcanhar de Aquiles. Temos apenas um pediatra. Recorremos a prestadores de serviço", explica. E mesmo estes, não tem sido fácil. A ULSLA tem 956 profissionais, dos quais 657 trabalham no hospital. Apenas 53 são médicos.
"Acho que os incentivos vão ter impacto. Agora são substanciais. Mas terá nas especialidades em que há muitos médicos, porque nas outras não haverá muito interesse em virem para cá", assume. O acordo com Santa Maria tem sido uma oportunidade "que vem ajudar a resolver os problemas da população" mas também um "ponto de contacto com um centro diferenciado" que permitirá aos médicos continuarem a desenvolver competências. Acordos que permitiram já aumentar a produção cirúrgica, de consultas e exames.