Doença Renal Crónica. Falhas no rastreio causam "números que envergonham"
A Doença Renal Crónica afeta, estimadamente, uma em cada dez pessoas em todo o mundo. Em Portugal, contudo, os últimos dados conhecidos apontam para valores de prevalência de 20%, ou seja, o dobro da média mundial. E os registos mostram que Portugal é o país da Europa com mais doentes a entrar em diálise por ano, e o 8º do mundo com os piores números neste capítulo. Um diagnóstico sombrio que leva a Sociedade Portuguesa de Nefrologia, neste Dia Mundial do Rim, a reivindicar mais ação do Ministério da Saúde na promoção do rastreio precoce e de tratamentos adequados para inverter "valores que nos envergonham no mundo inteiro", diz Ana Farinha.
Embora não existam números oficiais sobre os portugueses afetados por este tipo de doença, os dados do último estudo de base populacional publicado em Portugal, em 2020 - o Estudo Rena, da autoria do nefrologista José Vinhas -, perspetivavam então que um em cada cinco portugueses sofra da doença em alguma das suas fases.
A Doença Renal Crónica "é qualquer doença que afete os rins e os leve a deixar de funcionar adequadamente", resume Ana Farinha, médica nefrologista e secretária da Sociedade Portuguesa de Nefrologia. A evolução da patologia contempla cinco fases diferentes, "os cinco estádios, que correspondem a diferentes níveis de gravidade".
Ora, existem várias doenças que afetam os rins, "mas a que mais leva à necessidade de substituição da função renal é a diabetes", esclarece. "Depois, vem a hipertensão. E ainda algumas doenças genéticas, algumas doenças imunológicas associadas a doenças primárias do rim", acrescenta.
Na fase mais grave e avançada da Doença Renal Crónica, o doente tem de ser submetido à substituição da sua função renal e entrar num de dois processos: ou fazer tratamento por hemodiálise ou candidatar-se a um transplante de rim. E, aí, os registos obrigatórios mostram atualmente mais de 20 mil doentes em Portugal a precisar destas modalidades de tratamento - cerca de 13 mil em diálise e 7000 transplantes. Os tais números "que nos envergonham", diz Ana Farinha.
O mau comportamento do país nesta matéria, aponta a especialista, deve-se à ausência de medidas de rastreio e de prevenção da progressão da doença. "Em Portugal não existe nenhuma medida que preconize o rastreio da doença renal crónica, nomeadamente nas populações de maior risco, como as pessoas com diabetes, os doentes idosos, os doentes hipertensos... E sendo ainda uma doença assinto- mática até à fase final, é uma doença que pode avançar se não for pesquisada, através de análises de sangue e de urina. Na maioria dos casos, as pessoas só descobrem que sofrem desta doença numa fase final. Isso infelizmente é o padrão em Portugal", lamenta. Por isso, reforça, "é fundamental que o Plano Nacional de Saúde contemple a Doença Renal Crónica e que dê valor a uma doença que tem um forte impacto individual, social e económico".
Entre os pesados impactos da doença está, desde logo, a nível individual, "uma perda da qualidade de vida, que é muito significativa, para além da mortalidade, que é muito precoce", refere a médica nefrologista. "Estima-se que os doentes renais crónicos percam cerca de dez anos de vida em relação à população em geral. Por outro lado, mesmo nos doentes mais jovens, há um forte impacto social e laboral, com elevado absentismo e perda de rendimento", acrescenta.
Mas o fardo da doença pesa também fortemente nos orçamentos da Saúde, nos quais se estima que o tratamento da Doença Renal Crónica ocupe uma fatia aproximada de 5% - "uma das três causas que mais impacto tem no orçamento da Saúde, depois da infecciologia e da oncologia". Daí que ganhe redobrada importância a prevenção da doença, sublinha Ana Farinha. "até porque hoje temos boas formas de impedir a progressão da doença", diz.
"Temos já no mercado fármacos que comprovaram uma melhoria não só na mortalidade, como na progressão da doença. Desde que as pessoas estejam diagnosticadas, estas medidas podem ser implementadas e ajudar-nos a ter resultados e números diferentes do que os que temos atualmente". Por isso, sublinha como "verdadeiramente fundamental" que se aposte na prevenção e se criem "incentivos para que ao nível dos cuidados de saúde primários efetivamente se proceda ao rastreio da doença".
Além do atraso no plano dos rastreios, a médica denuncia outro fator que inviabiliza o acesso dos doentes aos melhores tratamentos: o mecanismo do preço compreensivo, que contempla o valor a pagar pelo Estado aos prestadores de cuidados de diálise por um pacote pre-estabelecido de tratamentos. Um mecanismo que não vê o valor atualizado "desde 2008", refere a nefrologista, e que impede melhores resultados.
"Existe um pacote de medidas a que os doentes têm acesso, dentro deste preço compreensivo, e tudo o que fuja desse pacote está fora de acesso, porque não é contemplado nos pagamentos que o Estado faz. É um mecanismo extremamente limitativo e um entrave a terapêuticas mais personalizadas, o que acaba por ser também um entrave à inovação."
Já ao nível da transplantação, o cenário é diferente e "Portugal tem números de que se deve orgulhar", defende Ana Farinha. "Temos taxas de transplantação ao nível de dador-vivo e de dador-cadáver bastante promissoras e estamos um pouco melhores do que outros países da Europa neste campo". Os tratamentos para diminuir a taxa de rejeição dos transplantes também "estão sempre a avançar", diz, e "hoje em dia é bastante seguro o transplante". "Daí que seja a melhor opção de tratamento da doença renal crónica", assegura.
"Um transplante de dador-cadáver e um transplante de dador-vivo têm uma sobrevida diferente. Em média podemos apontar para dez anos de sobrevida de um transplante. Mas temos doentes que chegam aos 30 anos", refere. Atualmente, em Portugal, há cerca de cinco mil pessoas em espera por um transplante de rim.
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