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Uma das causas das preocupações dos cidadãos da União Europeia no Reino Unido com o seu estatuto depois do brexit está também relacionada com um escândalo recente relativo aos maus-tratos oficiais contra residentes de longa data originários das Caraíbas, que incluíram ameaças de deportação.

A verdade é que o Reino Unido não possui cartões de cidadão nem qualquer sistema de registo compulsório para os cidadãos, facto muitas vezes esquecido nos outros países europeus. Enquanto na maior parte da UE é normal que todos, incluindo os nacionais de um país, sejam obrigados a informar as autoridades do seu endereço atual, no Reino Unido não existe tal exigência. (Na verdade, ninguém é obrigado a ter consigo qualquer tipo de documento de identidade, nem mesmo os residentes estrangeiros que não sejam cidadãos da UE e que tenham autorização de residência.)

Esta situação teve implicações para os cidadãos de outros países da UE. Enquanto em Portugal, qualquer pessoa de outro Estado membro da UE que pretenda permanecer por mais de três meses deve solicitar um certificado de registo na sua junta de freguesia (e renová-lo quando o prazo terminar), no Reino Unido até agora não houve necessidade de os cidadãos da UE se registarem.

Os empregadores davam trabalho aos cidadãos da UE e os senhorios arrendavam-lhes casas com pouca ou nenhuma burocracia, sabendo que gozavam dos mesmos direitos que os cidadãos britânicos.

A votação de 2016 para deixar a UE mudou tudo isso: uma vez que o estatuto dos cidadãos da UE que vivem no Reino Unido irá mudar após o brexit, em breve estes terão de se registar pela primeira vez. Como existem cerca de três milhões, o desafio é enorme.

Entretanto rebentou um escândalo sobre o tratamento dado a um grupo bem diferente, com direitos bem alicerçados. Pessoas das então colónias das Caraíbas que vieram para o Reino Unido na década de 1950 em resposta a um apelo para ajudar a reconstruir o país depois da Guerra, e as crianças que trouxeram para se juntarem a elas, têm direito à cidadania britânica ou, pelo menos, à residência. Mas porque vieram de territórios que ainda não eram independentes, muitos nunca precisaram de documentos.

Agora, depois de décadas no Reino Unido, muitas vezes a trabalharem em serviços públicos essenciais, o Ministério da Administração Interna disse a muitas dessas pessoas que poderiam ser deportadas.

A situação resultou da implementação de regras mais rígidas de imigração introduzidas quando Teresa May, a atual primeira-ministra, era ministra da Administração Interna.

Agora, como resultado do escândalo, a sua própria ministra da Administração Interna, Amber Rudd, demitiu-se e foi substituída por Sajid Javid, um filho de imigrantes do Paquistão, que ao comentar publicamente as ameaças de deportação disse que aquilo poderia facilmente ter acontecido com os seus pais.

Ele comprometeu-se a resolver o problema. Mas o tratamento da "geração Windrush", como os imigrantes das Caraíbas são conhecidos pois era o nome do primeiro navio que os trouxe para o Reino Unido, suscitou novas preocupações aos cidadãos da UE sobre a capacidade do Ministério da Administração Interna de agir com competência e humanidade.

A longo prazo, a solução mais fácil pode ser o cartão de cidadão para todos, mas na política britânica isso é muito mais fácil de dizer do que de fazer. Seja qual for a forma adotada, eles são uma pedra-de-toque para muitos que prezam as antigas liberdades, e as sondagens de opinião mostram consistentemente que a maioria das pessoas está contra.

O Reino Unido teve bilhetes de identidade obrigatórios na Segunda Guerra Mundial e imediatamente a seguir. Eles foram abolidos em 1952 por causa da tensão entre a polícia e os cidadãos.

Quando o governo de Tony Blair se movimentou para reintroduzir os documentos de identificação, a resistência atravessou todo o espectro político. A decisão de David Cameron de cancelar o plano em 2010 seguiu-se a uma campanha determinada, em que participou inclusivamente David Davis - atual ministro do brexit - que havia renunciado ao cargo de ministro-sombra da Administração Interna e ao Parlamento dois anos antes para fazer campanha contra os cartões. Na eleição intercalar resultante, ele foi reeleito com 72% dos votos.

Agora, ele parece um pouco mais aberto à ideia, mas apenas para os cidadãos da UE. Mas caberá ao muito criticado Ministério da Administração Interna implementar qualquer medida desse tipo.

Alison Roberts é jornalista britânica freelance

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