Documentários

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É imensa, em Portugal, a afluência aos concursos para apoio à realização de documentários, cujos projectos chegam a duplicar os de ficção. No entanto, parece bem mais difícil chegar a realizar documentários. Várias candidaturas repetem-se e são excluídas em sucessivos concursos do Instituto de Cinema, Audiovisual e Multimédia (ICAM), apesar da importância dos temas e/ou dos créditos de quem se candidata. Regulamentos restritivos, financiamentos insuficientes, júris incompetentes são dificuldades adiante focadas, relativas a esse género de cinema com visibilidade e interesse crescentes, também no nosso País, onde o Doclisboa se afirmou como "o festival de cinema com maior afluência de público" na capital, o ano passado (13 500 espectadores em oito dias).

As dificuldades começaram por aparecer-nos referidas a casos concretos. Raquel Freire, cuja longa- -metragem de estreia, Rasganço, evidenciou apreciáveis qualidades, com bom acolhimento, de crítica e público (foi o segundo filme português mais visto no ano em que se estreou, lembra a realizadora na entrevista ao lado), não teve o projecto seguinte financiado, embora apoiado por um produtor e sendo ele Paulo Branco. Em pouco tempo, falavam-nos de projectos, ou reprovados de seguida - também um de Margarida Gil sobre o escritor Carlos de Oliveira e outro, de Jorge Silva Melo, sobre o pintor Álvaro Lapa -, ou levando muitos anos a viabilizar, como o de Joana Pontes sobre Jorge de Sena (O Escritor Prodigioso). No decurso do nosso trabalho, descobrimos outro Os Vivos e os Mortos, de Sérgio Tréfaut, sobre os cemitérios do Cairo e quem lá mora como se fossem bairros (fotos acima). Três vezes reprovado, como os outros, não obstante o seu interesse e o currículo do premiado documentarista, também director da Apordoc (Associação pelo Documentário) e Doclisboa.

REGULAMENTOS e júris. Na acta do concurso de 2003, o currículo de Tréfaut e as potencialidades do projecto tiveram pontuação máxima, drasticamente reduzida por o tema sair do âmbito nacional, contra o parâmetro de avaliação que limita o documentário português a temática autóctone. O próprio júri, presidido por Luís Filipe Costa, realçou na acta esse "factor limitativo à criação nacional" e assinalou contradição com outro ponto do regulamento. Porém, Os Vivos e os Mortos, que já tem apoio espanhol e francês, se ali tinha ficado em 79.º lugar, no concurso seguinte descia a 115.º Trajectória tão comum quão desesperante para os candidatos...

Sobre o factor de penalização citado, José Manuel Costa pensa que "tem havido ênfase excessiva na componente cultural portuguesa, o que será restritivo e empobrecedor". Até porque "é o olhar, a sua força e intensidade, o que faz a grandeza do filme e cria património artístico e cultural", defende este vice-presidente da Cinemateca, responsável pelo Doc's Kindom de Serpa e professor de documentário no curso de Ciências da Comunicação da Universidade Nova.

"A Apordoc considera que há um problema de critérios de selecção. São convidados para júris pessoas, muitas vezes, a leste do que é um documentário e que não distinguem documentário de programa. O seu provincianismo faz com que se volte o documentário para o umbigo, quando os documentários gloriosos, de Joris Ivens e doutros grandes, são virados para o exterior", comenta ao DN Sérgio Tréfaut, acusando "os critérios que definem os concursos" de levarem as pessoas, "cada vez mais, a fazer um registo e não uma criação". Da recorrente queixa dos júris pelos concorrentes, além de sublinhar o óbvio - "os júris nunca agradam a toda a gente" -, Elísio de Oliveira, presidente do ICAM, revela que "é um drama encontrar gente interessada em fazer parte de júris".

FINANCIAMENTOS. Voltando ao "privilégio do programa" mencionado por Tréfaut, este acrescenta que "o grande adversário do documentário, em Portugal, é a RTP" e, se "o financiamento devia ser muito maior, também aí a RTP está muito mais em falta do que o ICAM". Explica "Na Europa, normalmente, o financiamento dos filmes passa muito pelas televisões e de várias formas. Eu faço filmes e vendo-os: com a pré-compra da Finlândia ganho mais do que com a RTP. Não é natural que me queiram dar seis mil euros por Lisboetas, se vendo o filme por oito mil à Finlândia e por 25 mil ao Arte".

Elísio de Oliveira salienta que "o investimento do ICAM no documentário tem crescido, nos últimos anos". Refere em concreto 2003 e 2004, quando, diz, em cada ano "foram completados 14 documentários", tendo o investimento, porém, crescido de 700 mil para 725 mil euros, com o acréscimo destinado a "apoio ao desenvolvimento da produção". Além de não ser muito, o dirigente do ICAM reconhece ter havido "redução do investimento" de 2002 para 2003. Então, foram 58 projectos a concurso, para primeiras obras de ficção longa; para documentário houve perto de 120 e apoio só a cerca de uma dezena. Tréfaut considera "naturalíssimo que fique gente de fora", mas acha insuficiente "o financiamento máximo de 50 mil euros" e a percentagem de projectos escolhidos "menos de dez por cento é pouco, comparado com alguns países europeus, e podia-se fazer mais".

José Manuel Costa advoga a necessidade de "distribuir melhor os dinheiros, não financiar tudo pela mesma bitola, o que impede a viabilização de projectos. O plafond de 50 mil euros é muito baixo, não há diversificação, prolifera quem faz documentário barato mas não, necessariamente, de qualidade, e corremos o risco de nos afastarmos dela cada vez mais." Ao mesmo tempo, faz notar que também se reduziu a diversidade de fontes de financiamento (nos anos 90, havia a Comissão dos Descobrimentos, entre outras) e "há um afastamento de todas as televisões do documentário de cinema, porque investem no seu próprio produto; sobretudo, compram produtos baratos."

Elísio de Oliveira garante que "o documentário tem merecido todo o apoio" do ICAM, ainda "por via do Doclisboa e dos Encontros de Serpa". Atribui o crescente interesse pelo género, também da parte de jovens realizadores, à "produção mais económica" e ao facto de "chegar mais às pessoas do que a ficção". Destacando o envolvimento do ICAM em "projectos de formação, iniciativas como o Doc TV Palop ou o África Doc", conclui que "há muitos projectos e ainda bem", mas acaba a concordar que "o orçamento é limitado".

Por outro lado, o protocolo com a RTP "tem sido cumprido", embora, admite o presidente do ICAM, seja "normalmente tido pelos produtores como insuficiente". Da sensibilidade da TV pública e do seu conhecimento da matéria, talvez dê indício a promoção a Noitadas/Documentários do ICAM, na 2 (semana 18-22 de Julho): desfilavam imagens e títulos, sem outra identificação. Não sendo o ICAM autor nem produtor dos filmes, pergunta-se porquê.

Bruno Santos, subdirector de Programas, Grelha e Comunicação, responde "Há dezenas de documentários, emitidos pela RTP, que não são co-produzidos com o ICAM. A gente omite [o nome dos autores] só para não ficar um calhamaço de informações."

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