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A vivenda branca da Rebelva herdada da avó de Paula Azguime é hoje o núcleo dos Miso Ensemble, um duo de música contemporânea e experimental que comemora 20 anos de carreira e 500 concertos. Depois de os filhos e netos terem partido, o 1.º andar e o rés-do-chão passaram a ser sucessivamente invadidos pelos vários projectos.

Na mesa da cozinha, misturam-se folhas de contabilidade e partituras. "Cada vez temos menos espaço", queixa-se Miguel Az- guime, mas sentimo-lo feliz por estes constrangimentos quotidianos revelarem actividade no projecto estético-musical.

A carreira dos Miso Ensemble é agora (quase) só internacional. Este ano deram um concerto cá e 27 no estrangeiro. "Esgotámos o mercado português. Não podíamos circular apenas no CCB, Serralves e Gulbenkian", admitem.

Até 1995 percorreram o País a convite das autarquias. Hoje, sustenta Miguel Azguime, "os programadores das autarquias têm uma estratégia mercantil. É como as associações de estudantes, que são a nossa elite potencial, só convidam o Quim Barreiros".

Há dez anos foram confrontados com um reconhecimento no estrangeiro que não tinham cá. "Em Portugal temos de ir à procura de trabalho. Lá fora o trabalho vem ter connosco, por telefone, mail, fax.... Temos público. Passamos metade do ano no estrangeiro."

Por isso as malas, não desfeitas, estão sempre prontas para a próxima viagem. Por vezes não é para concertos. No primeiro semestre de 2006 Miguel Azguime beneficiará de uma bolsa do Governo alemão "para compor e criar".

MOINHO.No estúdio, a antiga garagem da vivenda, acumulam-se marimbas, vibrafones, tambores, projectores, tripés, computadores, altifalantes, os auxiliares do Miso Ensemble em palco.

Num dos concertos, no Moinho de Maré do Seixal, aproveitaram o som das mós e da água para integrar a harmonia, com reprodução das palavras do moleiro. "É uma apropriação do espaço. Usando-o e dando-lhe vida", explica o compositor e intérprete, duas facetas do seu "projecto de autor" que, considera, "não é bem-visto na música, onde normalmente há separação".

Outro tipo da relação do Miso Ensemble com o espaço esteve visível na Expo. Miguel Azguime compôs músicas para as salas da exposição do Conhecimento dos Mares, tendo integrado a equipa de arquitectos de interior "para ir fazendo a leitura sonora do espaço".

Actualmente, Miguel Azguime diz-se "especialista da electrónica em tempo real". Explica "Em vez de fazer sons com sintetizadores, fazemos música com instrumentos acústicos. O computador transforma os sons, dando-lhe uma característica electrónica."

A vertente mais recente introduz a palavra. "Embora continuemos a ser um duo, há concertos em que estou só em palco, numa espécie de teatro musical, ou recital de poesia sonora, com elementos electrónicos na transformação da voz, manipulados pela Paula."

PROIBIDo. Conheceram-se na Orquestra do São Carlos, ele como percussionista e ela como flautista. Um dia, já em Paris, onde fez o curso superior, um professor disse--lhe "É preciso ir a Darmstadt pelo menos uma vez na vida." Ele foi, e desde que conheceu a comunidade da música contemporânea, nunca mais foi o mesmo. Claro que, conta--nos, "já tivera um choque de revelação aos 14 anos quando ouvi uma peça de Schonberg, com uma harmonia diferente da clássica".

Foi em Darmstadt, onde o compositor Karlheinz Stockhausen trabalha e ensina, que Miguel Az- guime compreendeu o seu caminho. "Percebi que mais do que intérprete, sou compositor." E sem esquecer as "notas proibidas" que lhe "ensinou" Schonberg, aquelas que "nunca ninguém tocava". Mais tarde fez seminários com Stockhausen e Tristan Murail. "Sou 'filho' de muita gente, mas considero-me autodidacta." As suas grandes referências portuguesas são Jorge Peixinho e Emmanuel Nunes.

ESTÚDIO. No regresso de Darmstadt concretizou o duo com a mulher. "Compúnhamos para nós, fomos ganhando terreno e o Miso Ensemble nasce em 1985. Tínhamos um excedente de empreendimento que nos levou a criar a editora Miso Records em 1988 (edita mais para os outros do que para nós). Em 1992 assumimos a direcção do Festival Música Viva e, em 1995, arrancámos com o Miso Estúdio."

Neste estúdio defendem o desenvolvimento de "um sentido pedagógico" com formação e informação, acolhendo pessoas que querem trabalhar e jovens estudantes que beneficiam do equipamento".

Compreendem que a sua música não agrada a todos. O concerto onde tiveram mais público (800 pessoas) ocorreu num encontro ACARTE, em 1998. "A nossa área musical é um nicho. Nunca se fala em milhares, mas centenas de pessoas. Um grupo experimental nunca tem sucesso". Dizem-se habituados, 20 anos depois de tudo ter começado. Miguel e Paula Azguime estão cientes de fazerem parte de uma "nova forma de pensar a música", obrigando-os a construir um caminho que não existia.

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