Do zoológico ao YouTube

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De tempos em tempos, os eleitores do Brasil (e não só) protestam nas urnas contra os políticos tradicionais, que dividem em dois grandes grupos: os que roubam e fazem e os que roubam e nem sequer fazem.

Nas eleições para a prefeitura de São Paulo em 1959, por exemplo, 100 mil paulistanos votaram numa candidata de oito anos de idade e 230 kg de peso, filha de Britador e Teresinha, e batizada de Cacareco. Cacareco era uma rinoceronte do zoológico de São Paulo que se tornara popular naqueles dias. Os votos nela foram declarados nulos e Adhemar de Barros, curiosamente aquele a quem é atribuído o slogan "rouba, mas faz", acabou eleito em vez de Cacareco.

Em 1988, no Rio de Janeiro, foi a vez de Tião receber 400 mil votos na corrida municipal. Com 25 anos e 1,52 m, era o mais popular macaco do zoo carioca por se passear pelo local de mão dada com o tratador.

Os votos em Cacareco e em Tião foram possíveis porque até 1996 o voto era impresso - com o advento da urna eletrónica no Brasil, só se podem escolher candidatos oficiais. E assim o voto de protesto passou dos políticos de zoológico para os de YouTube.

Pelo meio, o palhaço Tiririca foi o deputado federal mais votado do Brasil, concorrendo em 2010 pelo PL, por acaso - ou talvez não - o partido que hoje abriga Jair Bolsonaro. O slogan dele - "vota em mim, pior do que está não fica" - revelou-se, entretanto, erradíssimo e, em 2018 e 2020, a palhaçada atingiu o auge.

Foram eleitos, por exemplo, Daniel Silveira, para o Congresso Nacional, Gabriel Monteiro, para a Assembleia do Rio de Janeiro, e Mamãe Falei, para a Assembleia de São Paulo.

Mamãe Falei, 35 anos, tornou-se conhecido por entrevistas de rua num canal no YouTube, juntou-se ao MBL, grupo de jovens empresários que pediam o impeachment de Dilma Rousseff e apoiaram Bolsonaro, e acabou eleito. Depois de cenas de pugilato na Assembleia, destruiu a carreira política por, durante uma viagem de propaganda pessoal à Ucrânia, ter dito que as mulheres locais "são fáceis porque são pobres" e revelado intenção de voltar ao país para férias sexuais.

Gabriel Monteiro, 27, ficou famoso por gravar no YouTube, num tom justiceiro que logo o aproximou do MBL e do bolsonarismo, as ações policiais em que participava como agente. A TV Globo, porém, teve acesso em março ao making of das cenas em que o entretanto eleito vereador pagava a cidadãos sem-abrigo para fingirem assaltos e manipulava o discurso de crianças a quem supostamente ajudava. A acompanhar a ficção, dezenas de queixas de assédio sexual e violação de funcionários do acabado Monteiro.

Daniel Silveira, 39, foi destaque no YouTube em 2018 por quebrar a placa em homenagem a Marielle Franco, executada naquele ano. Depois de invadir escolas numa "cruzada pela educação" e agredir jornalistas, acabou preso, já deputado, por insultar juízes do Supremo. No mês passado, desafiou o Supremo a obrigá-lo a usar pulseira eletrónica. Bastou ao juiz ameaçar com multa diária para Silveira, desmoralizado perante a comunidade de bolsonaristas anabolizados que representa, colocar, mansamente, a pulseirinha e bater em retirada.

Cacareco, cujos restos mortais estão em exibição no Museu de Anatomia Veterinária da Universidade de São Paulo, deve contorcer-se de vergonha dos seus descendentes. E os políticos tradicionais devem contorcer-se de tanto rir.


Jornalista, correspondente em São Paulo

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