Do segredo dos deuses ao aplauso dos homens
A génese do Otello, penúltima ópera de Verdi, foi longa e secreta. É só em 1884, cinco anos após o projecto lhe ter sido proposto por Ricordi e Faccio (maestro da estreia), que Verdi inicia o trabalho de composição da ópera, resolução que muito deve à qualidade e potencialidades que o seu faro dramático detecta no libreto que lhe entrega Arrigo Boito (1842-1918). O compositor tem então já 70 anos e a última ópera que estreara fôra a Aïda, em 1871. Depois disso, apenas a segunda versão do Simon Boccanegra e a versão italiana (também revista) do Don Carlos. É após a estreia desta última que Verdi se lança no Otello. O trabalho de composição, mantido em quase completo segredo, termina a 1 de Novembro de 1886 e, três meses depois, a 5 de Fevereiro, dá-se a estreia no Scala de Milão. O processo de ensaios foi, também ele, rodeado do maior secretismo possível.
Personalidades e críticos de toda a Europa e a nata da sociedade italiana acorreram a essa estreia. O elenco original, escolhido e/ou aprovado pessoalmente pelo compositor, alinhava Francesco Tamagno, Romilda Pantaleoni e Victor Maurel no trio de protagonistas. Foi um enorme sucesso, a prova de que Verdi, afinal, ainda não estava acabado e demonstração da vitalidade do melodrama lírico italiano, posto em causa então pelo exemplo wag- neriano de drama e da função da orquestra nele.
A estreia no São Carlos dá-se dois anos depois, a 23 de Março de 1889, com Augusto Brogi, Eva Tetrazzini e Mattia Battistini nos protagonistas, voltando logo em Novembro do mesmo ano. Até 1910, outras nove produções se lhes seguiriam, para além de seis no Coliseu e uma no D. Amélia (actual São Luiz)!
Já no pós-II Guerra, o Otello regressa em 1952 ao São Carlos, e logo com aquele que muitos consideram o maior Otello do século XX o tenor chileno Ramón Vinay. Ópera e cantor voltam na temporada seguinte.
O mais recente Otello em São Carlos data de 1989 e teve Plácido Domingo por protagonista.
Agora, cabe a Mario Malagnini "defrontar-se" com estas memórias tão marcantes e, antes de mais, com aquele que é o papel de tenor mais difícil e exigente de toda a ópera italiana.
Baseada no famoso drama Othello, the Moor of Venice, de Shakespeare estreado em 1604, a ópera de Verdi desenvolve-se em quatro actos e o libreto de Boito conserva todo o essencial do original, naturalmente vincando mais as características dos personagens e o lado teleológico da acção, com a hubris de Iago (o seu Credo) a desencadear a marcha inexorável para a tragédia final.
Pesem embora aspectos como a estrutura dramático-musical em contínuo, a fusão de cena e orquestra e a orquestração terem levado muitos a falar de "wagnerismo", o Otello é Verdi puro, "vintage", mesmo quando absorve algo de Wagner. Obra de alguém liberto de quaisquer constrangimentos, com clara noção da sua evolução enquanto artista e do seu papel cimeiro na longa tradição da ópera e do belcanto italiano, bem como, em certa medida, dos gostos da Itália dos anos 80 de Oitocentos. Talvez por tudo isso se tenha despedido com a longa gargalhada do Falstaff...