Black Mirror, Friends, How I Met Your Mother, Game of Thrones, Gossip Girl, Teoria do Big Bang, Stranger Things, Dark, etc., etc., etc.. Em três anos, a lista de séries vistas por Leonor, de 16, tornou-se demasiado grande para ser escrita neste parágrafo. "Comecei por ver Anatomia de Grey, aos 13 anos, com a minha mãe", recorda. Naquela altura, assistia apenas a um episódio por semana, mas o acesso a plataformas como Netflix e HBO trouxe as maratonas de séries e até algumas diretas. "Mas poucas", ressalva..Em tempo de aulas, Leonor assiste, em média, a dois episódios por dia. "Quando estou sozinha, aproveito para ver também durante as refeições, por exemplo." Já nas férias, é mais difícil fazer contas: "Depende. Às vezes passo o dia todo a ver séries, mas há outros em que não vejo nenhum episódio." Interessa-se pelas histórias e é "uma forma de passar tempo" quando está sozinha. Reconhece que o tempo em frente ao ecrã é motivo de grandes discussões em família. Há quem lhe diga que está "viciada nas séries", mas Leonor recusa o rótulo. "Paro quando eu quiser. Faço uma utilização controlada.".Com o boom das séries televisivas, começou a ouvir-se frequentemente a expressão "viciado em séries". Ao contrário do que acontece com a dependência dos videojogos, que já é considerada doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a obsessão por ver séries não é reconhecida oficialmente como doença, mas, de acordo com os psicólogos ouvidos pelo DN, pode constituir um problema, quer nas camadas mais jovens quer nos adultos.."O gosto pelas séries não é novo. O ser humano gosta de histórias, de narrativas, e as séries são narrativas extremamente ativadoras das emoções, com frequência lógica, concreta, objetiva e, por vezes, com surpresa", diz João Faria, psicólogo clínico no PIN - Progresso Infantil. No entanto, reconhece, "a forma como as séries atualmente são disponibilizadas torna a sua utilização e gestão mais complicadas, porque há uma panóplia variadíssima de conteúdo, permanentemente disponível e em atualização, das várias séries". Esta alteração do paradigma, introduzida pelas plataformas de streaming, "contribui para o problema: o consumo abusivo e descontrolado das séries"..A receita à qual as séries obedecem também contribui para este fenómeno, diz o psicólogo Pedro Hubert. "Têm uma componente de sexualidade, violência, suspense, e não têm fim. Prendem os espectadores numa rede com várias fases, momentos e personagens", refere o técnico de aconselhamento em adições. Ao DN, conta que já teve contacto com pessoas que faziam uma visualização abusiva destes programas, mas geralmente associada a outros problemas, como a adição aos videojogos. "Pode acontecer mais do que sabemos, uma vez que as pessoas não procuram os psicólogos por causa disso.".Em 2013, um estudo encomendado pela FOX e pela Vodafone à empresa Neuromarketing Labs concluiu que os aficionados das séries sentem os mesmos sintomas de dependência que sentem os viciados em drogas. Segundo a equipa, produtos como Breaking Bad ou a Teoria do Big Bang podem criar sintomas físicos de adição como suores, pulsação acelerada e descida da temperatura corporal..Para chegarem a esta conclusão, os investigadores colocaram um grupo de 74 pessoas a ver séries à sua escolha. Quando era simulada uma falha técnica, deixando o ecrã preto, todos reagiram. De acordo com a equipa, quando os espectadores assistem a este tipo de produtos, o corpo segrega um conjunto de hormonas que têm um efeito calmante, seja através do despertar de emoções positivas ou negativas. O que os espectadores querem, diz a investigação, é séries que despertem emoções..Para Pedro Hubert, a produção de dopamina é uma das explicações para o facto de algumas pessoas fazerem um consumo abusivo destes programas televisivos. "Quando as pessoas veem coisas com grande intensidade emocional, há a produção deste neurotransmissor, que está associado ao bom humor e ao sistema de recompensas. Com esse aumento, pode falar-se em dependência". Mas, para entrar no campo da adição, há alguns critérios, sobre os quais falaremos mais à frente, que têm de estar presentes..Em casos extremos, esta condição pode mesmo levar ao internamento, como aconteceu na Índia. No ano passado, um jovem indiano, de 26 anos, foi hospitalizado por alegadamente estar viciado no serviço de streaming da Netflix. Desempregado e desanimado com a vida, passava o dia a ver séries e filmes. Segundo o médico que o atendeu, no Instituto Nacional de Saúde Mental e Neurociências, em Bengaluru, foi a forma que arranjou para se sentir melhor - um escape usado intensivamente ao longo de seis meses..De acordo com os psicólogos, os casos mais complicados na área da ficção televisiva surgem sobretudo associados a outros problemas, como depressões ligeiras e quadros de ansiedades. Para pessoas com este tipo de psicopatologias, diz João Faria, as séries televisivas funcionam como "uma forma de anestesia", que serve para camuflar sentimentos negativos.."O mundo parava à espera dos episódios".Foi com Seinfeld (1989) que a paixão de Carla pelas séries começou. Recorda-se de sair à noite e voltar mais cedo para casa para chegar a tempo dos episódios da sitcom. Terá sido influenciada pelo pai e pela irmã mais velha, que gostavam muito deste tipo de programas. Depois vieram Os Sopranos (1999), C.S.I (2000), Anatomia de Grey (2005), Mentes Criminosas (2005) e Dr. House (2006). "E revolucionaram tudo. Adorava ficar religiosamente à espera de cada episódio. O mundo parava", lembra a jurista, de 40 anos..Atualmente, a lista de séries a que já assistiu é infindável. Ao telefone com o DN, entusiasma-se a falar de Breaking Bad (2008), Orange Is the New Black (2013), Game of Thrones (2011), Big Little Lies (2017) e de outras mais recentes como Pico da Neblina (2019), The Loudest Voice (2019), Miracle Workers (2019), Catarina, a Grande (2019), entre muitas (mesmo muitas) outras. Depois de quase 20 anos "a levar com séries de formato americano", prefere agora as europeias. "Quero ser estimulada", conta..Carla vê séries desde que chega a casa, por volta das 19.00, até ao momento em que vai dormir. "Pelo menos entre quatro e cinco horas por dia. Às vezes até estou só a ouvir", adianta. Para não monopolizar a televisão, usa o tablet. Já fez noitadas - o chamado binge-watching - mas poucas vezes. "Para o tempo que tenho, considero que vejo o normal. Não deixo de fazer coisas para ver séries." Para ela, é "entretenimento". Enquanto há pessoas que levam livros quando vão de férias, Carla leva no tablet as séries que descarrega nas vésperas. "O que mais gosto nas séries? É ficar alheada, a prestar atenção naquilo. Gosto de histórias que me transportem para outro mundo, para outra realidade.".É também por essa razão que Andreia Miranda, jornalista, de 32 anos, gosta de ver séries: "Ajudam-me a desligar. Confesso que não procuro séries pesadas porque o meu trabalho já o é. Por isso, tudo o que seja uma série com uma história cativante e que me ajude a desligar do dia-a-dia é uma série que gosto de ver. E, não sei explicar porquê, gosto muito daquelas que envolvam médicos, bombeiros e polícia.".Acedemos ao seu perfil na app que usa para controlar as séries (FollowShows): 2771 episódios visualizados até à data. "Mas já vi mais do que isso", confessa. O fascínio por este tipo de programas começou com a série portuguesa Riscos (1997), Hospital Central (2000), Serviço de Urgência (1994) e C.S.I.."Depois comecei a ver Anatomia de Grey e a juntar séries atrás de séries." Até agora, conta, só desistiu de uma a meio - a Empire (2015). "À segunda temporada fartei-me da história e da violência gratuita", explica..Quando tem disponibilidade, Andreia vê os episódios que vão saindo ao longo da semana. "Mas, normalmente, acumulo para 'ter o que fazer durante o fim de semana". Se viajar de comboio, por exemplo, aproveita para se atualizar. Na app, recebe as indicações dos episódios que estão para sair: NCSI (2003) no dia 27, 9-1-1 (2019) no dia 28, This Is Us (2016) no dia 29. E muitas outras, já que se encontra a seguir mais de uma dúzia. Fez a última maratona a ver Elite (2018), até às quatro da manhã, mas é com livros que comete as maiores loucuras..Do consumo recreativo à dependência.Ter uma atividade recompensadora para se distrair durante algumas horas ao longo da semana é saudável, diz Pedro Hubert. "Quando se começa a expandir a atividade no tempo é que começamos a falar de comportamentos abusivos ou dependência", esclarece o psicólogo, destacando que "é difícil alguém ficar dependente de séries, mas acontece"..Tal como para outras dependências, é preciso haver um conjunto de fatores para ser considerada uma adição. Desde logo, a abstinência: "Se a pessoa quer ver um episódio e não pode, fica muito irritada, zangada, intolerante." É também por isso que pode existir uma "sensação de vazio" quando a temporada de uma série chega ao fim. Em segundo lugar, tende a existir "síndrome de tolerância": a pessoa começa por ver um episódio por dia, mas vai aumentando a dose diária..Um comportamento aditivo está também associado a perda de controle: "A pessoa diz que só vai ver um episódio, mas fica três ou quatro horas em frente ao ecrã." Por fim, os problemas surgem com a "troca de prioridades", seja a nível académico, profissional ou familiar. Ou seja, a pessoa não está com a família ou falta ao trabalho para ver séries..Questionado sobre os cuidados a ter, João Faria, que se dedica à intervenção no uso da internet e das telecomunicações, aconselha os utilizadores das plataformas de streaming a "fazerem uma visualização mais faseada e a não verem séries todos os dias". Se notam que já existe um problema de abuso, é importante ver se existem outros associados, nomeadamente depressão ou ansiedade.