Do ouro mundial à paixão que a levou a ficar em Madrid e seguir Educação Física
Quando tinha 7 anos, Carla Sacramento escondia-se debaixo da mesa à espera do fecho da emissora nacional (RTP). "A minha mãe mandava-me dormir e eu escondia-me até dar o hino à meia-noite. Depois subia para uma cadeira, era o meu pódio, e cantava o hino e só depois ia dormir", contou ao DN a antiga campeã mundial dos 1500 metros.
Anos depois foi "às lágrimas" ao ouvir A Portuguesa no lugar mais alto do pódio no Europeu de Estocolmo em 1996. Gostou tanto que repetiu no Mundial de Atenas no ano a seguir. Em 1997 mudou-se para Madrid, onde se estabeleceu de vez em 2005, quando disse adeus às pistas, com 35 anos. Hoje é treinadora no colégio dos filhos e professora de Educação Física na capital espanhola.
"Eu tinha um empresário espanhol e fazia muitos estágios em Madrid e provas em Espanha, depois quando acabei a carreira, após os Jogos Olímpicos de 2004, tinha de decidir se ficava em Espanha e fiquei", confessou ao DN, explicando que o amor por um polícia municipal espanhol a "obrigou" a tomar a decisão final.
Carla ainda pensou em voltar a Portugal e seguir o curso de Psicologia: "Já estava no terceiro ano e cheguei a pedir a equivalência, mas não me deram e preferi tirar antes o curso de Educação Física, já que tinha o estatuto de atleta de alta competição." Matriculou-se na universidade e fez o curso, mas, entretanto, engravidou e o início das aulas foi adiado. Optou então por dar treinos extracurriculares no colégio dos filhos: "Agora saiu uma lei que diz que os professores de Educação Física têm de ser bilingues e tens de fazer uma prova de acesso para entrar. Agora passo os dias na biblioteca a estudar das nove da manhã às nove da noite para fazer o exame de acesso e o de inglês [risos]..."
A antiga atleta vem a Portugal uma ou duas vezes por ano "e mais alguma se tiver convites para algum evento". E, se os filhos quiserem ser atletas profissionais um dia, Carla vai apoiá-los. Costuma contar-lhes algumas das suas histórias. De como foi "espetacular" ser campeã mundial e de como lamenta não ter conquistado uma medalha olímpica, por exemplo. Ou ainda como enganava a mãe para ir correr: "Ela não queria que eu fosse, dizia "tu és tão magrinha, não vais aguentar". Eu lá saía às escondidas para participar nas provas escolares. Uma vez uma professora disse que eu tinha de ir para um clube para seguir no atletismo, fui para o Paivas, depois para o Fogueteiro e a seguir para o Benfica, onde cheguei e fui a surpresa do mês, bati os recordes todos."
Olhando para trás, Carla Sacramento fica "muito satisfeita" pela carreira que teve. E a época de que sente mais saudades é de quando era júnior, "aquela fase do passar de ser uma promessa para ser uma certeza". E "só agora" é que tem noção do que fez e conquistou. "Lembro-me de cada vez que me diziam que eu tinha sido um fracasso numa prova, se as pessoas soubessem como era difícil chegar a uma medalha numa prova internacional... não é fácil hoje e muito menos era na altura", desabafou.
A antiga atleta olímpica fez depois uma comparação para mostrar as dificuldades de então. "Hoje, só na zona do Seixal, perto de onde eu vivia, há três pistas [uma delas tem o seu nome], na minha altura tinha da fazer duas horas e meia para ir ao Estádio Nacional treinar, agora no Jamor até há centro de rendimento com pista interna. Os atletas de hoje têm de aproveitar."
A anemia antes da medalha
Meio-fundista e especialista nos 1500 metros, distância onde conseguiu as duas medalhas de ouro da carreira, preferia afinal os 800 metros: "Eu gostava mais de correr os 800 metros. Os 1500 foi uma opção tática. Nos 800 era preciso uma velocidade mais explosiva e eu era mais forte na velocidade de cruzeiro." Apostou nos 1500 e colheu frutos. Conquistou várias medalhas em grandes competições internacionais e superou por mais de duas dezenas de vezes os recordes nacionais, a representar Benfica, Sporting e Maratona, entre outros.
O ano de 1992 marcou a estreia olímpica da atleta, que viria a participar em mais três Jogos Olímpicos: "A medalha olímpica ficou por conquistar. Barcelona 92 foi um sentimento indescritível, foi o concretizar de um sonho, aquele momento em que ficas contente por estar lá, mas depois queres mais do que participar."
Foi em 1996, na Globe Arena, em Estocolmo, que a portuguesa arrancou a primeira medalha de ouro nos Europeus indoor, nos 1500 metros. Meses depois adoeceu e descobriu que se tratava de uma anemia, que foi curada em Espanha... a tempo dos Mundiais.
"Sempre fui muito criticada por ser devota e ter muita fé, mas eu acredito que isso é que me ajudou", desabafou, recordando a prova de Atenas, que venceu de forma categórica, com a melhor marca do ano e uma distância "considerável" para Regina Jacobs. Foi uma pequena vingança de Carla, que tinha perdido o ouro para a norte-americana em 1995, nos Mundiais indoor de Barcelona. Mas para ela foi apenas "o subir à cadeira e cantar o hino, como fazia aos 7 anos de idade".