Do Menino Jesus ao Pai Natal
O Natal é ao mais tempo a mais socializada das épocas festivas, alargada até aos confins do espaço público, alegadamente descristianizada e mercantilizada, e a mais íntima, porque a adesão ou rejeição que se sinta em relação ao Natal assenta no mais denso e no mais fundo de nós próprios.
Muitos insurgem-se com o facto de a leitura estritamente cristã do Natal se ter diluído numa prática de dom generalizado e festivo que, contudo, está nos próprios fundamentos da vida em sociedade. Substituir pelo bom e generoso São Nicolau a figura do Menino Jesus não corresponde a uma negação do Natal, antes a um seu alargamento ecuménico, que acabou por impor esta nossa festa a todas as culturas do mundo. Não é mais verosímil, dentro da fábula, que os presentes sejam distribuídos por um velhinho agasalhado, num trenó conduzido por renas, do que por uma criança recém-nascida, ainda que divina? Quando eu era pequeno, ainda à espera do Menino Jesus, receava que a inabilidade das suas mãos pequeninas deixasse cair os presentes que eu esperava.
Dizer que o espírito de Natal foi descristianizado e reduzido ao consumo mercantilista promovido pelo capitalismo comercial é desconhecer o caráter de abertura ao outro e à comunidade, fora do calculismo rígido da troca, que o dom ou a dádiva introduz na sociedade e nas relações humanas. Marcel Mauss, no seu Essai sur le don (1925), alertou-nos para o papel fundamental que a dádiva assume na formação dos laços sociais. Não me parece que esse espírito de dádiva esteja muito longe do cristianismo.
Por outro lado, sem negar essa realidade voraz do consumismo, lembremos que o consumo estimula a economia, ao contrário da acumulação e especulação dos mercados financeiros, que hoje dominam o nosso sistema económico. Não faltarão os espíritos mesquinhos que vejam na mais modesta troca de Natal feita entre pobres um desperdício digno de censura moral e corte de subsídios. Mas o espírito de dádiva irá sobreviver ao calculismo da troca, mesmo que este venha disfarçado de caridade.
O que mais nega, porém, o Natal não é nem esse calculismo frio nem a denúncia crítica do seu aproveitamento comercial. O espírito de negação de Natal está dentro de nós, na recusa que cada um pode fazer dos seus laços e apelos, seja porque vive radicalmente a solidão ou a perda, seja porque não aceita um estado de espírito que considera ser socialmente imposto a todos e a cada um. Respeitemos a negação dos que fogem do Natal, mas não deixemos que ela se queira impor a nós, os que gostamos do Natal sem pejo nem disfarce.
Vivi muitos Natais fora do meu país, em países tropicais onde a cenografia natalícia se transfigurava de tal modo, que entendíamos como o Inverno faz parte essencial deste evento e das suas histórias, enquanto na Índia sentimos o Natal como parte de uma ecuménica sucessão de festas religiosas, que todas vinham igualmente ao encontro de nós.
O verdadeiro Natal é o da nossa infância. Associo-o sempre a casas com salas muito frias, no Alentejo, e a sapatinhos à beira de uma lareira apagada, de onde saíam, brilhantes de novidade, os brinquedos que nessa noite trouxera o Menino Jesus. Esse mesmo Jesus Cristo que não deixava um rico passar pelo buraco de uma agulha. E que se deixou, num sorriso doce, substituir pelo Pai Natal.
Diplomata e escritor