O distrito de Beja e o Líbano têm a mesma área territorial. Mas a comparação termina aí. Se de um lado temos à volta de 153 mil habitantes, do outro são sete milhões, que vivem apertados numa das regiões mais instáveis do globo. E que constituem um mosaico social extremamente fragmentado e prenhe de rivalidades, que subsiste à custa de equilíbrios precários, sempre prontos para serem quebrados. Cada segmento da sociedade puxa a brasa à sua sardinha. Os respetivos chefões corrompem o sistema e apropriam-se das instituições da governação. À emergência de líderes mais honestos, os chefões respondem com assassínios ou intimidação, para calar ou empurrar para o exílio quem os ponha em causa..Assim se compreende que um país de gente empreendedora e com um nível cultural elevado tenha atravessado uma longa guerra civil, de 1975 a 1990, e viva uma crise nacional profunda desde há anos. A situação entrou numa fase aguda em outubro de 2019, com milhares de cidadãos a protestar regularmente nas ruas. A economia e o sistema financeiro deixaram de funcionar. O governo central ficou prisioneiro das rivalidades ferozes que existem entre os 18 grupos político-confessionais que constituem o país e que servem de peças de um xadrez de tensões entre as potências regionais, sobretudo do Irão e da Arábia Saudita. A situação tornou-se catastrófica depois da explosão que ocorreu no porto de Beirute. Desde então, o país passou para a primeira página das notícias e para a lista prioritária das preocupações das potências do costume, graças sobretudo aos esforços de Emmanuel Macron. O Líbano permanecerá nessa lista enquanto a atenção internacional estiver focada na sua crise. Mais tarde ou mais cedo, aparecerá uma nova tragédia, algures, e o país, como outros que também vivem conflitos nacionais recorrentes, passará para a prateleira dos esquecidos, no frigorífico mundial onde se guardam, bem ou mal congeladas, tantas crises insolúveis..Entretanto, foi anunciado um auxílio humanitário de urgência. É fundamental que essa ajuda chegue rapidamente e que seja entregue a quem de facto está numa situação de grande precariedade. Aqui o papel das organizações das Nações Unidas é o de garantir a credibilidade da distribuição dos bens humanitários, que deverá ser canalizada através de ONG libanesas. Há que evitar o aproveitamento político dessa ajuda, quer pelas fações internas quer pelas potências doadoras. Por isso, não me parece demais lembrar que a ação humanitária tem como objetivo salvar vidas, com transparência, sem corrupção. Não tem nada que ver com possíveis mudanças na teia de aranha política. É verdade que o Líbano precisa de mudar o seu labirinto político. Surgiram, nos últimos dias, uma série de propostas que colocariam esse encargo sobre os ombros da comunidade internacional. Falou-se de um novo regime de mandato - o país esteve sob mandato francês até 1943 - e há muita gente no Líbano, ao nível popular, que gostaria que isso acontecesse. Essa modalidade, mesmo com adaptações às realidades da política moderna, seria uma coisa do passado. Não corresponde à visão atual, que coloca a responsabilidade de mudança nas mãos dos agentes políticos nacionais..Também não me parece possível enviar para o país um contingente das Nações Unidas, com uma missão política aprovada pelo Conselho de Segurança, ao abrigo do Capítulo VII da Carta da ONU. Essa parte da Carta permite o uso da força militar e de polícia, o que teoricamente tornaria a missão mais eficiente. Na realidade, só funciona se houver vontade política nacional suficientemente forte, que queira mudar a maneira de gerir o país, o que me parece muito difícil de conseguir no Líbano. Poder-se-ia, isso sim, recorrer às funções de mediação e de facilitação do diálogo político, um papel que é cada vez mais central no menu das Nações Unidas. Só que não acredito que os políticos libaneses estejam disponíveis para um esforço desse tipo..Assim, enquanto se presta algum socorro humanitário e se espera por um arrefecimento político interno, receio que o Líbano se junte ao grupo de países que a inércia do Conselho de Segurança coloca regularmente no congelador de conflitos..Conselheiro em Segurança Internacional Ex-representante especial da ONU