Do lado de cá do espelho…

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"O cinema é o irreal em estado puro. Não o tocamos do outro lado do espelho. É ele que nos toca. Ou antes, que nos arrasta para o interior da sua irrealidade como nenhuma realidade o pode fazer". É Eduardo Lourenço quem o afirma, no décimo segundo volume das Obras Completas, que acaba de ser publicado pela Gulbenkian, com coordenação de Pedro Mexia. O volume intitula-se, significativamente, "Segundo Paraíso: do cinema como ficção do nosso sobrenatural". O conjunto ilustra a afirmação do pensador, permitindo ir ao encontro de uma verdadeira "psicanálise mítica", que invocamos quando se inicia o ano do centenário do seu nascimento. Contra todas as simplificações, este pequeno volume, é verdadeiro revelador de um pensamento complexo que vai no sentido do que somos na História e em diálogo com a realidade contemporânea.

Os três mitos que estruturam o volume, segundo Pedro Mexia, ajudam-nos a compreender outros tantos paradoxos, que são: a História, como sucessão de acontecimentos; a noção de "estrela", como Charlot, Brigitte Bardot, Marilyn Monroe e Mastroianni; e Portugal, inevitavelmente. E o cinema permite mostrar "outra coisa" para além da representação, como "linguagem e mitologia" - "um sonho sem sono, um fora sem dentro, um milagre inquieto, uma técnica que inventou um paraíso". Afinal, tudo pode resumir-se à frase inicial do primeiro texto sobre Edgar Morin, de 1956 - "o homem imaginário está em toda a parte. Não existe outro". Jogo de palavras? Tudo menos isso, mas sim a presença do fascínio, que reside na descoberta do "fantástico da realidade quotidiana".

A imaginação confronta-se com o concreto e ficamos sem saber qual dos lados é ilusório. Chaplin era assim irmão gémeo de dois mundos - um real e outro imaginário, um no domínio do sonho, e outro como um desenho animado. "O Cinema é o nosso teatro de sombras chinesas sem verdadeira origem" ... E Eduardo Lourenço em mais de uma circunstância, sobre a revelação da violência, recordou o sublime poema de Sophia de Mello Breyner Elsinore - "... No entanto o mal não se via: era apenas / Um leve sabor a podre que fazia parte / Da natureza das coisas". Daí que, sobre o filme de Carol Reed O Terceiro Homem, com base em Graham Greene, Eduardo Lourenço nos fale da "confusão do justo": "o contrário do crime não é a virtude, é a fé, ou em linguagem somente humana, o amor para quem as evidências da lei ou da natureza, mesmo a irrefutável evidência da morte, não constituem o último tribunal". Eis por que a paradoxal busca de um segundo paraíso é a matéria-prima do cinema, como Dreyer demonstra em A Palavra e que nos leva à essência da Arte. Nós estamos para cá do espelho mágico que o cinema é. Francisca, com Agustina, bem como Benilde, com Régio, levam ao encontro com "um admirável cineasta tout court. Importa pouco que a gente apressada ou inepta não tenha dado a Manoel de Oliveira a óbvia oportunidade de figurar entre as estrelas (na maioria bem cadentes) da Croisette. O seu reino é outro, a sua sedução precisa da obscuridade luminosa da paciência".

E em Non ou A Vã Glória de Mandar descobre-se a essência do mito, em uma espécie de anti-Lusíadas, como matéria digna, não de historiador, mas de mitólogo. É um "Portugal-fora-da-História, não por princípio, mas pelo nosso gosto de a ignorar, que o narrador remete para a História como rosário de altos e dolorosos (vãos?) sacrifícios sem outro resultado que o de uma identificação, acaso redentora, com um Desejado que numa imagem fulgurante se revela como incapaz do Desejo". E chegamos ao imperador da língua portuguesa no Sermão da terceira quarta-feira da Quaresma (1670): "Terrível palavra é um non. Não tem direito, nem avesso; por qualquer lado que o tomeis, sempre soa e diz o mesmo. Lede-o do princípio para o fim, ou do fim para o princípio, sempre é non". Porque "tão vil é na mentira o sim, como honrado na verdade o não".


Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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