Do espólio perdido na guerra às memórias do filho de Peyroteo

Clube quer eternizar como sócio n.º 9 o goleador que faria 100 anos em março. Busto ou estátua em Alvalade agradava à família.
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Fernando gostava de "ver a Federação reconhecer os recordes" do pai, Fernando Peyroteo, antigo goleador do Sporting que, entre 1937 e 1949, marcou 544 golos em 334 jogos. Só no campeonato foram 331 em 197 jogos, uma média de 1,68 por jogo, um recorde mundial que os leões querem ver reconhecido. O filho gostava ainda de que o Sporting fizesse "um busto ou uma estátua, algo físico que não fosse só umas fotografias ou uns placards", em Alvalade.

O goleador morreu em 1978 e deixou uma "eterna saudade" à família leonina, que este sábado terá a oportunidade de o eternizar como sócio n.º 9. A proposta do conselho diretivo que vai a assembleia geral é a primeira de muitas homenagens a um dos Cinco Violinos, no centenário do seu nascimento.

Para a história ficaram os golos (muitos) e as memórias de um tempo em que quase nada era registado e poucos sabiam a dimensão do feito do goleador que o tempo foi consagrando e agigantando. Ao ponto de ser hoje um fenómeno à escala mundial, sem marca registada. Sempre que "é preciso" usar o nome de Peyroteo, o Sporting fala com o filho mais velho do goleador. Um método que tem funcionado bem. "Tenho de estar muito reconhecido a Bruno de Carvalho. Ele, no que diz respeito à memória do meu pai, tem sido espetacular", disse o filho Fernando ao DN.

Grande parte do espólio de Peyroteo foi perdido na Guerra Colonial (1961-64). "Depois de a minha mãe morrer, ele resolveu ir viver para Luanda e na altura da descolonização tivemos de fugir. Na altura eu já tinha dois irmãos, gémeos, e lembro-me de que eles dormiam na banheira para estarem protegidos das balas, que sobrevoavam a casa. A situação foi-se complicando e houve uma altura em que tivemos de fugir. Foi pegar no essencial, nos documentos e ir para o aeroporto. O importante para ele era preservar a nossa vida. A casa lá ficou com camisolas, taças, troféus, bolas..."

E o que restava na casa de Lisboa e de alguns familiares foi sendo doado ao museu do Sporting, que hoje ostenta com orgulho um camisola e umas botas do "melhor goleador da história do futebol mundial", nascido a 10 de março de 1918, em Humpata (Angola).

Para o filho Fernando (e os dois irmãos gémeos) ficaram as memórias de um pai bon vivant, solidário, rigoroso e exigente. Quando ele nasceu o pai já tinha deixado de jogar, mas o que os tios lhe contaram é que o pai "era como uma metralhadora apontada à baliza": "Chutava com muita força e sempre lá para dentro. Um atleta elegante, com muita pujança física e muito correto a jogar e a lidar com os adversários."

Um perfil que se foi refletindo na personalidade e forma de pensar. "Uma das coisas que afligia o meu pai, quando via futebol na televisão, era ver os jogadores em frente à baliza com rodriguinhos. Ficava mesmo indisposto e começava reclamar: "Então mas ele não chuta? Do que é que está à espera, está em frente à baliza." Para ele era para rematar e acertar, não era a bola para as couves, como se diz."

Certo é que não foi pelos pés do filho Fernando, hoje advogado e professor de direito em Lisboa, que a herança desportiva de Peyroteo seguiu caminho. "A fasquia e as expectativas estavam demasiado altas. Já viu os recordes?", questionou, consciente de que o pai "sempre soube" que ele não ia dar jogador.

Aliás, ele e as bolas de futebol tinham mesmo uma relação difícil. "Eu tinha muitas bolas lá em casa e escondia-as ou atirava-as pela janela. Havia miúdos na rua que já sabiam e iam brincar para perto da janela, à espera de que eu atirasse mais uma. Ficavam todos contentes. Para mim, aquilo não era uma bola, era um símbolo do roubo de atenção do meu pai", contou Fernando, que só à medida que foi crescendo foi percebendo "o fenómeno Peyroteo".

Ainda hoje, 40 anos depois da sua morte, a lenda perdura, assim como o carinho e o reconhecimento. "Se vou ao banco ou a tribunal e tenho de dizer o nome, perguntam se sou da família. E, quando eu digo que sou filho, há logo conversa: "Mas você é filho do Peyroteo? Aquele do Sporting? Mesmo?" Uns acreditam, outros desconfiam, outros, do Benfica, claro, dizem que o Eusébio é que era bom..."

Bom garfo e pai exigente

Peyroteo era um bom garfo. Mas não gostava só de comer, também cozinhava. Tinha pratos que ainda hoje são conhecidos na família, como "a caldeirada de cabrito e uns bifes especiais". Além disso, "era uma pessoa muito agarrada às suas ideias e extremamente generosa, por vezes demais, uma pessoa que gostava muito de receber, de ter a casa cheia, muito brincalhão e uma enciclopédia de histórias e anedotas, jovial e encantador".

Como pai, era rigoroso e com regras: "Os horários das refeições eram sagrados." O que para Fernando "era um problema", quando queria passar o dia na praia: "Era sempre preciso negociar. Por vezes, ainda cedia ao almoço, mas ao jantar nada feito." E nunca mais se esqueceu de que em criança "andava maluco para ter uma bicicleta", até que o pai disse que sim: "Tive de contribuir com o conteúdo do mealheiro e hoje entendo por que o fez. Queria que soubesse que a vida não era só facilidades."

Peyroteo teve uma origem humilde e a fama nunca lhe subiu à cabeça, segundo o filho. "Claro que algumas portas se abriam e havia mais facilidades por ser o Peyroteo! Lembro-me de ele querer ir ver o Ben-Hur ao antigo cinema Monumental, em Lisboa, e quando chegámos lá a lotação estava esgotada. Qual quê? Para o senhor Peyroteo há sempre lugar. Foram buscar três poltronas para nós. Tenho impressão de que muita gente mal viu o filme, a olhar para ele", recordou.

Mas "havia o reverso da medalha". Era difícil explicar a uma criança de 7 ou 8 anos o assédio dos fãs. "O pai era meu! Ainda mais nessa altura, que era filho único", conta Fernando, que não fazia ideia de que já houve 22 Peyroteos registados na FPF, além do "Júlio", como chama a José Couceiro.

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