Do doente enviado para a casa errada às cirurgias trocadas e falta de camas
4 de janeiro de 2019. Eram 22.00 quando M.V. recebeu um telefonema do Centro Hospitalar do Baixo Vouga (CHBV) a comunicar que o pai podia ir para casa. Passavam poucos minutos das 23.00 quando chegou ao hospital para falar com a médica sobre o tratamento que o pai teria de fazer. Na entrada do hospital, viu uma maca entrar na ambulância com uma pessoa que julgou ser o progenitor. Quando chegou a casa, percebeu que a pessoa que ali se encontrava não era o seu pai. Veio a constatar que era um homem que nem sequer tinha tido alta.
"Julgo que esta troca de doentes não pode nem deve acontecer", escreveu M.V. na queixa apresentada naquele hospital. A ocorrência foi objeto de uma deliberação da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), publicada esta terça-feira, juntamente com dezenas de outras concluídas no segundo trimestre de 2019. De norte a sul do país, doentes e familiares queixam-se de atrasos nas cirurgias e na realização de exames, quedas em meio hospitalar, problemas na disponibilização de livro de reclamações, troca de receitas e de exames médicos, complicações nas transferências entre hospitais.
Voltamos à "troca de doentes". Em resposta à queixa, o CHBV pediu desculpa pelo sucedido. "A afluência de doentes à Urgência, nesta época, é muito elevada e nesse dia em particular era elevadíssima. Nestes cenários de grande densidade humana, o erro pode acontecer. Transmitimos-lhe com toda a honestidade que o mesmo não é frequente", lê-se na resposta.
A análise feita pelo diretor e enfermeiro chefe do Serviço de Urgência constataram que "no dia em que ocorreu o incidente, o Serviço de Urgência estava com um número elevado de doentes e que não foi cumprido o procedimento de verificação de identidade do doente aquando a sua alta". Quando o utente sai do hospital, a sua identidade "deve ser confirmada pelo profissional destacado para o efeito (assistente operacional ou enfermeiro) e familiar (fase do processo que falhou)".
Analisados todos os elementos constantes dos autos, a ERS conclui que "o prestador não assegurou a correta identificação do utente, não sendo a sua conduta garantística dos direitos e interesses legítimos do utente, designadamente, do direito de acesso à prestação de cuidados de saúde adequados, de qualidade e com segurança".
29 de novembro de 2018. M.L.B, uma mulher de 72 anos, deu entrada no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP) para ser operada às cataratas, ao abrigo de um acordo com o Centro Hospitalar de Setúbal. Tinha cirurgia marcada para começar às 12.30. No mesmo dia, estavam programadas mais 15 operações. Para as 11.00 estava agendada uma cirurgia semelhante a outra mulher - M.B.. Como os nomes eram idênticos, a mulher (M.L.B) respondeu pelo nome de M.B. quando foi chamada.
Desta forma, foi feita a preparação para a cirurgia e selecionada, erradamente, a lente de M.L.B. "As enfermeiras vão recolher o material e a lente seguindo a lista do plano operatório, e não pelo processo clínico e selecionam a lente da doente M.B., em vez da lente da doente M.L.B.", lê-se no processo. Já depois da cirurgia, o hospital recebe uma chamada da utente M.B. a avisar que estava atrasada. É então que a equipa médica percebe que existem duas utentes com nomes semelhantes, "ambas para serem operadas ao olho direito, e que havia sido trocada a ordem inicialmente prevista no plano operatório".
Informada pelo médico da troca, a mulher concordou submeter-se a uma nova cirurgia logo de seguida para troca da lente. Segundo a equipa médica, foi feita sedação, mas a utente diz que não - uma informação que os médicos dizem ser falsa. A filha, identificada como A,. apresentou uma queixa no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa (HCVP) porque a mãe passou por duas cirurgias ao mesmo olho devido "a um erro da equipa médica", relacionado com o facto de "haver dois nomes parecidos". "Quem sofreu foi quem menos devia (a utente)", reclamou a queixosa.
Na análise que fez ao caso, a ERS concluiu que "os procedimentos de verificação da segurança cirúrgica não foram corretamente seguidos pelo prestador. Antes pelo contrário, foram manifestamente incumpridos pelo HCVP em, pelo menos, dois momentos cruciais".
Esses dois momentos dizem respeito à "identificação da utente, com consequente introdução de lente intraocular de potência errada e necessidade de uma segunda intervenção cirúrgica para correção do sucedido, com risco acrescido e dano físico e psicológico para a utente" e no momento do "registo cirúrgico relativamente à primeira intervenção, com inexistência de preenchimento da lista de verificação cirúrgica, o que poderia ter permitido a deteção atempada do erro de identificação e de seleção do material cirúrgico."
Para a Entidade Reguladora da Saúde, esta é "uma grave falha em matéria de segurança cirúrgica e uma incontornável quebra no nível da prestação de cuidados de saúde".
No dia 16 de fevereiro de 2018, uma doente oncológica deu entrada no serviço de urgência do Hospital Garcia de Orta com um traumatismo no ombro direito. Foi-lhe diagnosticada uma fratura diafisária do úmero direito, confirmada através de raio X. Entretanto, comunicaram-lhe que podia ir para casa aguardar pela cirurgia. "O meu filho questionou os técnicos do serviço de ortopedia se tinha alta. Comunicaram que não tinha alta mas ia para casa por falta de disponibilidade e vagas no serviço", conta a queixosa.
Mesmo sem a alta, o hospital encaminhou, "ainda assim, a utente, doente oncológica com comorbilidades várias, para o domicílio por inexistência de camas disponíveis".
Na resposta à doente, o hospital reconheceu que a situação ocorreu por "indisponibilidade de vagas para internamento (camas disponíveis), motivada pela ocorrência de situações inesperadas e urgentes". Além disso, explicaram, "por se tratar de uma doente idosa, com comorbilidades várias (nomeadamente patologia oncológica) e tendo a fratura sido imobilizada com controlo da dor (fratura passível de tratamento conservador em ambulatório), o internamento neste período de decisão, não sendo estritamente necessário, iria aumentar os riscos inerentes aos internamentos prolongados (nomeadamente risco de infeções hospitalares, desorientação temporo-espacial em local não familiar, entre outros)".
Na sua análise, a ER considera que esta atitude "não se adequa à condição de Serviço de Urgência Polivalente em que o prestador se constitui, já que o obrigava a ter referenciado a utente para outra unidade do SNS, em respeito pelo seu direito à prestação de cuidados de saúde de qualidade e de modo integrado".
No dia 18 de dezembro de 2017, uma mulher foi transferida do Hospital de Braga para o Centro Hospitalar do Médio Ave, na sequência de uma cirurgia após acidente, porque esta era a sua área de residência. "As condições em que me puseram foram cerca de 48h nas Urgências deitadas numa cama, sem higiene pessoal, sem uma pega para me levantar, sem almofada", diz a utente.
A queixosa diz que passou de um "hospital em que estava num quarto para ser instalada durante 48h num corredor com frio e com pouca informação médica". Para a mesma, é "inadmissível" a situação a que foi submetida, estando inclusive "sujeita a apanhar doenças".
Em resposta à doente, o hospital reconheceu que "por vezes, a capacidade de resposta do referido serviço fica comprometida, devido à elevada afluência de utentes e às exigências das intervenções a realizar", uma situação que piora no pico do inverno.
"Não obstante esta limitação, e por forma a assegurar os cuidados essenciais, designadamente de medicação e alimentação, a utente encontrava-se em regime de internamento, ainda que permanecesse fisicamente no serviço de Urgência", explicou o CHMA.
De acordo com a deliberação da ERS, o serviço de urgência do CHMA reconheceu que "não está preparado física, tecnicamente nem em termos de recurso humanos, para a prestação de cuidados que esta utente necessitaria", não tendo porém, cuidado de tal carência no momento em que comunicou previamente com o Hospital de Braga no sentido da transferência da utente".