Em fevereiro de 1990, o Festival de Berlim exibiu, extracompetição, o filme Spur der Steine (à letra: "Trilha de Pedras"), uma produção da República Democrática Alemã com data de 1966. O seu simbolismo histórico e político era incontornável, reforçado pelo facto de a queda do Muro ter ocorrido apenas três meses antes. Realizado por Frank Beyer, nele se fazia o retrato crítico de uma unidade da indústria petroquímica, cujo funcionamento caótico, pontuado por alguns esquemas de corrupção, estava longe de ilustrar a competência celebrada pelo discurso oficial das autoridades comunistas. Era, além do mais, uma genuína revelação, já que, na estreia, Spur der Steine tivera apenas alguns dias de exibição, permanecendo proibido ao longo de 23 anos..Não admira que a história cinematográfica das "duas" Alemanhas seja pontuada pelo desejo amargo e doce de uma unidade utópica. Nessa perspetiva, o mítico As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders, define um momento tanto mais importante e sugestivo quanto não obedece à cronologia decorrente dos factos históricos..Talvez se possa mesmo dizer que, graças aos poderes figurativos do cinema, As Asas do Desejo consegue concretizar um projeto - um desejo, justamente - que só se materializaria dois anos mais tarde. A saber: circular pelo céu de Berlim (referido no título original: Der Himmel über Berlin), como se o Muro não passasse de uma excrescência histórica que as personagens principais podem dispensar. Porquê? Porque essas personagens, Damiel (Bruno Ganz) e Cassiel (Otto Sander), são anjos cujas ações não estão condicionadas pelos muros, concretos ou abstratos, construídos pelos humanos..A popularidade e o prestígio de As Asas do Desejo levam-nos muitas vezes a esquecer que Wenders realizou uma "sequela", em 1993, intitulada Tão Longe, Tão Perto. Desta vez, um dos anjos, Cassiel, cede à "tentação" de se tornar humano, o que acaba por acentuar a sensação de desencanto que atravessa todo o filme - como se o desejo de um outro futuro que alimentava o primeiro filme se transfigurasse, agora, num desencantado confronto com a realidade nua e crua..Nesta galeria de histórias de um país à procura da unidade perdida, um dos títulos mais populares continua a ser Adeus, Lenine! (2003), realização de Wolfgang Becker, com Daniel Brühl num papel de insólito humor. Ele é um jovem que, sabendo da paixão da mãe pela sua querida Alemanha de Leste, enfrenta um desafio cruel, sempre à beira do burlesco. Acontece que a mãe, vítima de um acidente, sobrevive em coma durante alguns meses, período durante o qual... cai o Muro! Dito de outro modo: dos noticiários televisivos aos painéis de publicidade da Coca-Cola, o filho assume a tarefa heroica de proteger a frágil saúde da mãe, escondendo-lhe os sinais da nova situação social e política..Através das atribulações contagiantes da comédia, Adeus, Lenine! reflete as convulsões internas da Alemanha após a queda do Muro. Mas há também exemplos de filmes de outras origens que, por assim dizer, encenam o "efeito Alemanha" na história europeia. Um dos títulos mais curiosos, Duas Vidas (2012), de George Maas, coprodução germano-norueguesa, narra um drama familiar de perturbantes ressonâncias históricas. A sua protagonista é uma mulher nascida da relação de uma jovem norueguesa com um soldado alemão durante a Segunda Guerra Mundial; como muitas outras crianças, consideradas de "pura raça ariana", foi retirada da sua família biológica e enviada para a Alemanha - será a queda do Muro de Berlim que, cerca de meio século mais tarde, vai influir decisivamente no reencontro com o seu passado....São muitos os títulos de natureza documental sobre a reunificação da Alemanha, produzidos ao longo dos últimos 30 anos, em particular por televisões com vocação de serviço público - da alemã Deutsche Welle à norte-americana PBS (que apresentou, a 8 de novembro de 2019, uma emissão intitulada "30 anos após a queda do Muro de Berlim, porque persistem as divisões alemãs?"). Em qualquer caso, um filme francês de origem televisiva (France 2), mas profundamente cinematográfico no seu conceito e narrativa, destaca-se de todos os outros: Allemagne 90, Neuf Zéro (1991), de Jean-Luc Godard..O título escolhido por Godard coloca-o em linha direta com a herança de Roberto Rossellini, mais exatamente com o seu Alemanha, Ano Zero (1948), retrato trágico de uma criança nos escombros de Berlim, após o fim da guerra. Com o seu novo retrato alemão, agora "nove-zero", Godard cruza personagens reais e imaginárias - incluindo o detetive Lemmy Caution, interpretado por Eddie Constatine, que já protagonizara o seu Alphaville (1965) -, interrogando a nova/velha identidade da Alemanha como uma questão que, afinal, envolve toda a Europa. Trata-se de filmar aquilo que somos face ao que, melhor ou pior, imaginamos ser.