A impossível geringonça.2015.Há quatro anos, António Costa parecia negar aquilo que tinham sido os resultados dessa noite eleitoral de 4 de outubro. Depois de ter chegado à liderança do PS, um ano antes, com a promessa de que só ele conseguiria derrotar a direita no poder, os socialistas soçobravam no voto popular: PSD e CDS coligados tinham 1 993 921 votos (36,86%) e o PS ficava-se pelos 1 747 685 votos (32,31%). E, pior ainda, os socialistas elegiam menos deputados do que os sociais-democratas. Mas havia um dado ainda mais relevante: PSD e CDS, reunidos na coligação Portugal à Frente, não tinham a maioria absoluta de deputados nem de votos - era a esquerda. E num regime parlamentar, em que os governos são votados na Assembleia da República, isso poderia fazer toda a diferença, mas quase ninguém nessa noite admitia o cenário de um governo apoiado à esquerda, com uma exceção: o então ainda comentador Marcelo Rebelo de Sousa. Nunca o PS se tinha entendido com o PCP, com duas óbvias exceções que poucos (ou quase nenhuns) terão lembrado nessa noite: o apelo ao voto comunista em Mário Soares decidido pelo então líder do PCP, Álvaro Cunhal, na segunda volta das eleições presidenciais de 1986; e a coligação alargada de esquerda para a Câmara de Lisboa que Jorge Sampaio conseguiu liderar em 1989, para derrotar a... direita. É neste quadro que António Costa joga. Não se demite, ao contrário do que muitos antecipavam, na comunicação social e no próprio partido, e lança pontes à esquerda num discurso só completamente decifrado mais tarde, ao asseverar que o PS tinha "a responsabilidade de garantir que a vontade dos portugueses" seria respeitada: a maioria tinha votado à esquerda, era isto. Hoje sabe-se (pelo livro Como Costa Montou a Geringonça em 54 Dias , de Márcia Galrão e Rita Tavares, ou por uma investigação do Expresso sobre "a história secreta da geringonça") que o líder socialista já andava há meses a manter conversas informais e sinais de abertura que lhe permitiram colocar esse cenário na mesa, com comunistas como Domingos Abrantes, Rúben de Carvalho, Jorge Cordeiro e outras figuras de peso. A formação do governo de 2015 vai para lá dos nomes que o formaram, joga-se neste encontro entre PS, PCP e BE. O Bloco reclama uma paternidade no pontapé de saída da geringonça, quando Catarina Martins desafiou Costa, num debate televisivo no dia 14 de setembro de 2015 (e numa entrevista ao DN nesse dia), para apontar as condições para governar. Um e outro seguiram com os seus discursos de campanha. Na manhã de domingo, há um encontro entre Fernando Medina, pelo PS, e Francisco Louçã, que para os socialistas "não foi conclusivo" e para o qual "não havia um mandato negocial" atribuído ao presidente da Câmara de Lisboa, que hoje governa em Lisboa só com o BE. "Gostava de poder dizer que essa reunião teve outra importância, mas não foi de forma alguma a cimeira fundadora da geringonça", explicou Medina ao Observador. O sinal claro de que a esquerda se movia veio do PCP na noite das eleições, de forma pública: primeiro, por Francisco Lopes (que leva o BE a mudar de discurso nessa noite), e depois com a frase lapidar de Jerónimo: "O PS tem condições para formar governo." Dos dias seguintes, a história já é conhecida: Cavaco Silva indigitou Passos Coelho, que formou governo e caiu com estrondo no Parlamento. PS, BE, PCP e PEV deram ao Presidente da República as garantias escritas que Cavaco exigira (achando que nunca existiriam) e António Costa tomou posse de um governo a que a grande maioria prognosticava uma curta e infernal vida..A coligação que permaneceu com surpresas na posse.2004.Derrotado nas eleições europeias de 2004, José Manuel Durão Barroso acabou escolhido para presidente da Comissão Europeia deixando o país dividido entre os que exigiam eleições antecipadas e aqueles que entendiam que (sendo o regime parlamentar) PSD e CDS podiam continuar a governar. Em julho, o Presidente da República de então, Jorge Sampaio, preferiu a continuidade abrindo uma crise no "seu" PS, levando o secretário-geral do partido à época, Ferro Rodrigues, a demitir-se. Tratava-se de "uma derrota pessoal e política" a decisão de Sampaio em não convocar eleições antecipadas, disse o socialista. Pedro Santana Lopes, que era o presidente da Câmara de Lisboa e nem era deputado, foi o nome indicado pelo PSD para governar. O então social-democrata (que saiu e fundou o partido Aliança) decidiu mexer no governo e, para surpresa dos nomeados, na estrutura orgânica do executivo. Na própria tomada de posse, Paulo Portas, que era o líder do CDS, fica a saber que será ministro da Defesa (como era esperado) e dos Assuntos do Mar. Já a centrista Teresa Caeiro era, na manhã do dia da tomada de posse, apontada como secretária de Estado adjunta do ministro da Defesa e dos Antigos Combatentes - com a justificação de que era "filha e neta de militares" - para no momento da posse assinar como secretária de Estado das Artes e do Espetáculo. Com tamanha embrulhada, Santana ficou aos papéis: a meio do discurso, parou, voltou atrás, folheava as páginas do discurso e não acertava no que queria dizer. O seu governo ficou com esta marca registada..O solitário fazedor de governos.1991.Na construção do mito de Cavaco Silva, o antigo primeiro-ministro e ex-Presidente da República disse que apenas foi fazer a rodagem do seu Citroën para acabar líder do PSD, em 1985, quando o plano já estava muito bem traçado; também se dizia que os seus governos eram pensados ao detalhe no segredo da sua cabeça e no silêncio de um gabinete seu, mas também se diz que no melhor pano cai a nódoa. Em 5 de novembro de 1991, no dia em que tomariam posse os secretários de Estado do governo da segunda maioria absoluta de Cavaco, os socialistas atacam a escolha de Henrique Diz para secretário de Estado da Ciência e Tecnologia. Afinal, Diz era o militante n.º 155 427 do PS e o primeiro-ministro fica furioso quando sabe. Não admite um socialista infiltrado no seu executivo e exige ao ministro da pasta, Valente de Oliveira, que o intercete antes da tomada de posse para confirmar a informação. Verificados os factos, o nome é rasurado do livro de posse e a cadeira fica vazia..O bloco central feito governo.1983.Como geringonça, bloco central é uma expressão que ganhou vida própria na política portuguesa, depois do "acordo político, parlamentar e de governo", "celebrado entre o PS e o PSD", depois das eleições de 1983, e que hoje é usada, por exemplo, para entendimentos estruturais entre os dois partidos ou, depreciativamente, quando se fala de "bloco central de interesses". Com o fim do governo da Aliança Democrática (PSD-CDS-PPM), o Presidente da República, Ramalho Eanes, convoca eleições que acabam ganhas pelo PS com 36,1%, o PSD 27,2%, a APU (atual CDU) 18,1% e o CDS 12,6%. Mário Soares envia então uma carta aos militantes socialistas a perguntar o querem fazer. A resposta foi esmagadora: 80% dos que responderam a este "referendo" defenderam uma coligação com o PSD. Soares inicia negociações então com Carlos Mota Pinto, que liderava os sociais-democratas, em 11 de maio desse ano, apesar das conversas já virem de trás. Cavaco desfazia a solução dois anos depois..Os governos decididos em Belém.1978-1979.Portugal vai agora para o seu XXII governo constitucional e, nestes 45 anos democráticos, houve três que nasceram em Belém. Chamam-se "governos de iniciativa presidencial" e só Ramalho Eanes usou esta prerrogativa, que a revisão constitucional de 1982 limitou em muito (para alguns constitucionalistas) ou tornou impossíveis (para outros constitucionalistas. Foi em 2015, quando da queda do executivo de Passos Coelho, que se falou de novo da possibilidade de Cavaco Silva usar essa fórmula. Não o fez. Entre agosto de 1978 e dezembro de 1979, durante o primeiro mandato de Ramalho Eanes, o Chefe do Estado usou essa premissa e chamou Alfredo Nobre da Costa (para o governo que menos tempo durou: 17 dias), Mota Pinto e Maria de Lourdes Pintasilgo (a única mulher que até hoje liderou um executivo, num governo em que os ministros eram todos homens).