Na doença de Parkinson, muito antes de aparecerem os sintomas, o cérebro começa a reorganizar-se para tentar compensar a falência funcional da área que controla a execução de movimentos. Em Coimbra, onde dirige um dos mais importantes grupos de investigação dedicado às neurociências, Miguel Castelo-Branco chegou a essa conclusão depois de analisar os movimentos oculares de vários voluntários, descobrindo um mecanismo surpreendente de reorganização funcional do cérebro que reforça a esperança em encontrar terapias mais eficazes para lidar com as chamadas doenças neurodegenerativas.."É uma coisa que as pessoas se calhar não sabem, mas a doença está lá desde muito cedo, só que o cérebro adapta-se de uma forma incrível até... desistir, passe a expressão", conta o investigador. É esse, aliás, o grande desafio da maior parte das doenças neurodegenerativas, de Parkinson a Alzheimer, Huntington ou a esclerose múltipla. "É que agora sabemos que em geral tudo começa décadas antes de a doença se manifestar clinicamente", sublinha Miguel Castelo-Branco, médico e cientista que partiu da área da visão para se apaixonar pelo estudo do cérebro "e da sua complexidade", área na qual tem acumulado reconhecimento nacional e internacional, com vários prémios recebidos.."Embora continue a ser um cientista da visão e trabalhe muito na área da visão, comecei a trabalhar nos mecanismos que explicam como é que o cérebro decide", refere. O que o levou a mergulhar no universo das doenças do cérebro, sejam as neurodegenerativas ou as doenças do neurodesenvolvimento, como o autismo, ao qual tem dedicado muita investigação. Se há uma palavra que une muito aquilo que faz, reforça, é "decisão". Por exemplo: "Uma pessoa com autismo quando vai a uma festa tem que tomar decisões que têm a ver com a interação social. Não devia ter comportamentos rígidos, mas acaba por ter. É o chamado comportamento não adaptativo"..Perceber o que leva essas pessoas à tomada de decisão ou os mecanismos que inibem uma determinada função estão entre os objetivos do investigador de Coimbra. Mas também, para além disso, estudar a capacidade do cérebro em reorganizar-se perante a ameaça dessas neurodoenças e, fazendo a transposição da investigação para a área clínica, estabelecer terapias de neuroreabilitação que torne o cérebro mais capaz de "contrariar" essas condições. Porque, é essa uma das firmes convicções de Miguel Castelo-Branco, o cérebro tem uma plasticidade, mesmo em adulto, que lhe confere "a capacidade de se readaptar ao longo da vida na saúde e na doença". "O cérebro no adulto tem capacidades limitadas de se reorganizar, mas nós acreditamos que a reabilitação intensiva puxa por essas capacidades", diz.."Todos nós perdermos células com a idade e o nosso cérebro vai-se readaptando. Há pessoas que nunca vão ter doença de Alzheimer ou de Parkinson porque nunca vão acumular de forma significativa os depósitos que levam à doença, mas todos nós, mesmo que nunca venhamos a ter uma doença neurodegenerativa, perdemos neurónios. E todos nós temos que nos adaptar, mesmo no envelhecimento saudável", diz..Por muito que nos custe, a verdade é que, com a idade, ficamos mais lentos em determinadas tarefas. "É como no futebol, com aqueles jogadores na parte final da carreira. Deixam de correr os 12 km em campo e tornam-se mais "sábios" a gerir o esforço. Por isso, não é caso para ficarmos desesperados. O nosso cérebro torna-se mais sábio, mas mais lento. E reajusta-se, gere de outra forma. Na saúde e na doença", ilustra o investigador..Ora, perante doenças neurodegenerativas, ganha importância a chamada "reserva cognitiva", que "pode atrasar muito as primeiras manifestações clínicas". Ou seja, quanto mais ativo o cérebro ao longo da vida, mais preparado está para enfrentar essa ameaça. "Se tivermos muito treino cognitivo ao longo da vida, muita atividade cerebral, desenvolvemos sinapses, conexões, que depois servem de reserva. E se a pessoa tiver essa reserva, aguenta mais tempo o declínio cognitivo", explica. Foi o que viu também na doença de Parkinson. "Vemos o cérebro a reconectar. As regiões que comandam os movimentos voluntários no lobo frontal do cérebro deixam de responder e isso faz com que as regiões posteriores do cérebro (parietais) sejam chamados a dar mais input, para compensar"..O estudo sobre a doença de Parkinson, publicado na prestigiada PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences), revista da Academia Americana de Ciências, e realizado com a colaboração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC) inseriu-se nessa estratégia de investigação sobre os mecanismos de plasticidade do cérebro: avaliar a capacidade de reorganização do cérebro na fase inicial de uma doença neurodegenerativa..Miguel Castelo-Branco frisa que "ao contrário do que as pessoas possam pensar", a doença de Parkinson "não é só uma doença motora", compreende "também muitos processos de decisão". "Há também manifestações emocionais envolvidas", diz. "Por exemplo, algumas das pessoas com doença de Parkinson jogam demasiado, têm o jogo patológico, e isso tem a ver com processos de decisão e de controlo de decisão, o chamado controlo inibitório"..Os seus dois campos de eleição, ciência visual e neurociências, estão muito ligados nos projetos liderados pelo médico e investigador de Coimbra. E este não é exceção. "Há muitos mecanismos visuais que levam a perceber melhor como é que determinadas doenças se vão manifestar e permitem detetá-las em fases precoces", justifica. Aqui, explica, "usámos os conhecimentos que temos na visão, neste caso os circuitos óculo-motores, para perceber como é que estes circuitos estão afetados na doença de Parkinson numa fase precoce. E conseguimos perceber como é que o cérebro tenta reconectar-se quando a pessoa ainda está funcionante"..Pensemos nos animais na selva, e na dinâmica predador-presa, sugere. "O movimento ocular periférico é muito importante para a sobrevivência nesse ambiente, para captar estímulos ou movimentos na periferia. Esse é um sistema que evoluiu durante milhões de anos em algumas espécies e que está muito apurado no ser humano", refere. Acontece que as pessoas com doença de Parkinson passam a ter muita dificuldade nesses movimentos para a periferia. "Por exemplo, num jogo de ténis têm dificuldade em seguir a bola, em fazer a perseguição ocular. Ou em apanhar um alvo visual, como uma mosca a pousar, por exemplo, aquilo a que chamamos o movimento balístico ou sacádico", conta..Ao estudar o comportamento do cérebro dos participantes neste projeto durante a realização de tarefas muito simples, Miguel Castelo-Branco chegou a uma conclusão surpreendente, "porque contraria o que é um pensamento comum entre a comunidade científica". O estudo permitiu demonstrar a plasticidade do cérebro adulto, diz. "A plasticidade foi demonstrada a nível funcional e molecular no cérebro adulto, que se pensa ter menor plasticidade que o cérebro jovem". Para além do mais, sublinha, "este efeito foi observado numa fase inicial de uma doença neurodegenerativa, o que mostra as reservas de compensação que o nosso cérebro tem, mesmo na adversidade"..E como é que se manifestou essa plasticidade do cérebro? Sabendo-se que os sistemas visual e motor se modificam na doença de Parkinson, o estudo demonstrou que a falência do sistema de execução de movimentos oculares é compensada nas fases iniciais da doença pelo aumentado de atividade da parte do sistema visual que os programa. "Temos duas áreas no cérebro, uma que planeia os movimentos oculares e outra que executa. Nós para executarmos temos de ter primeiro o planeamento. O planeamento é feito numa área mais posterior do cérebro, o córtex parietal, e a execução numa parte mais anterior do cérebro. O que descobrimos é que a área responsável por executar fica afetada numa fase precoce da doença e a área responsável pelo planeamento tenta compensar isso aumentando a sua atividade. Ou seja, há uma reorganização dos padrões de atividade do cérebro, em fases mais precoces da doença", detalha Miguel Castelo-Branco, alargando a importância da descoberta para "várias doenças neurodegenerativas"..Mas essa não foi a única descoberta do estudo. "Nós descobrimos isso, mas descobrimos mais do que isso. Descobrimos também o mecanismo molecular que leva a essa reorganização funcional. A molécula que na doença de Parkinson está alterada é a chamada dopamina, e ela liga a recetores, outras moléculas que recebem o sinal da dopamina. E nós vimos que há uma reorganização da quantidade dos recetores da dopamina, precisamente na zona posterior do cérebro, aquela que está a aumentar a sua atividade neste esquema de compensação"..E isso, frisa o investigador, é relevante porque "abre caminho a, pelo menos, podermos atrasar esse declínio funcional do cérebro", através de novos programas de reabilitação que trabalhem esses mecanismos de compensação..Fundamentais no trabalho de Miguel Castelo-Branco são as técnicas avançadas de imagem utilizadas no ICNAS (Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde) e no CIBIT (Instituto de Imagem Biomédica e Investigação Translacional), onde desenvolve investigação. Técnicas como a ressonância magnética funcional ou a PET, o acrónimo usado para simplificar a Tomografia por Emissão de Positrões. "Há uma área do nosso trabalho que está muito ligada à descoberta de marcadores de diagnóstico e que é mais tecnológica: medição de atividade cerebral, imagem molecular. Nós introduzimos aqui métricas que a olho nu para um neurologista é impossível identificar. Assim como introduzimos técnicas de quantificação de imagem que permite decifrar coisas onde os radiologistas e especialistas em medicina nuclear só veem manchas. Nós aqui colocamos toda uma bateria de quantificação da imagem, através de modelos matemáticos", descreve..Foi o que utilizaram também neste estudo sobre Parkinson. Por exemplo, a ressonância magnética funcional permite estudar aquilo a que os investigadores chamam de controlo inibitório. "Permite-nos ver a atividade do cérebro enquanto executamos movimentos oculares e, através desses movimentos oculares, nós podemos avaliar a capacidade motora e também aspetos cognitivos. Vamos pondo estímulos visuais num ecrã e a pessoa tem que olhar na direção desses alvos, ou às vezes na direção oposta, para medir o tal controlo inibitório", explica o cientista.."Qual é a limitação da ressonância funcional? É que não permite ir ao detalhe molecular. Para isso usámos outra técnica de imagem, o PET, que permite visualizar moléculas no cérebro". E foi isso que permitiu identificar a reorganização dos recetores de dopamina na parte posterior do cérebro durante o processo de compensação, comprovando essa "reorganização cerebral quer do ponto de vista funcional quer do ponto de vista molecular", diz, defendendo o uso complementar destas técnicas. "Isso é engraçado porque o ICNAS e o CIBIT são dos poucos institutos que conciliam estas duas técnicas. Noutros sítios são consideradas técnicas rivais. Ou seja, tradicionalmente a neurorradiologia e a medicina nuclear têm sido áreas muito afastadas, mas nós aqui tentamos mudar esse paradigma trabalhando isso em conjunto exatamente porque são técnicas complementares", sublinha, promovendo precisamente abordagens multidisciplinares nos seus projetos. "As equipas que trabalham comigo são muito interdisciplinares, vão de psicólogos a engenheiros informáticos, eletrotécnicos, físicos, biólogos. Isso permite-nos trabalhar muito na área das tecnologias, nomeadamente a chamada interface homem-máquina"..A capacidade conferida pela tecnologia é um avanço enorme na área do diagnóstico. E, como se sabe, quanto mais preciso e precoce o diagnóstico, mais portas se abrem para uma terapia eficaz. Os novos métodos permitem promover a ideia de uma "medicina cada vez mais preventiva" e "detetar algumas doenças quando elas estão ainda num estado subclínico", explica Miguel Castelo Branco, para quem a identificação precoce de biomarcadores moleculares de determinada doença pode ter um impacto significativo na forma como é planeada a reabilitação ou intervenção terapêutica..Terapias que não passam apenas pela formulação de fármacos, diz. Nos projetos liderados por este investigador de Coimbra são muito utilizadas técnicas de neuroestimulação e neurofeedback, frequentemente com recurso a jogos e ambientes virtuais. "Isso depois depende muito da função cognitiva que queremos reabilitar. Mas temos os chamados serious games, jogos que a pessoa até pode jogar em casa. São jogos cognitivos de treino intensivo", refere.."No fundo, um resumo muito leigo deste trabalho é que "quem não tem cão caça com gato". Tudo bem, nós não vamos curar, mas como é que nós podemos melhorar o que existe? No caso da doença de Parkinson, como vimos que há uma área que está a funcionar mal, e outra mais atrás fica hiperativa, num chamado plano de emergência, aproveitando as reservas disponíveis, nós temos que aproveitar a reserva que há e estimulá-la. E a técnica de neuroestimulação vai tentar encontrar os melhores focos para estimular", ilustra o investigador..O neurofeedback é muito utilizado, por exemplo, nos projetos sobre o autismo, doença do neurodesenvolvimento a que Miguel Castelo-Branco dedica muita investigação. "No neurofeedback, treinamos a própria pessoa a aprender a aumentar a atividade em certas regiões do cérebro. Isto parece ficção científica, mas é possível. A pessoa monitoriza a sua própria atividade cerebral, em tempo real, e tem ferramentas para tentar aumentá-la.".Num ensaio clínico publicado recentemente, relativo ao autismo, o investigador conseguiu resultados promissores, ao mostrar que a pessoa com autismo aprende a aumentar a atividade de uma região do cérebro que tem a ver com a capacidade para reconhecer expressões faciais (medo, alegria, nojo...). "Isto é treinável, com recurso à ressonância magnética funcional e aos tais serious games. No caso do autismo, demos um avatar [identidade virtual] às pessoas. E quanto mais o avatar sorrisse, sinal de que maior era a atividade cerebral. Se o avatar parasse de sorrir, era sinal de menor atividade. As pessoas têm de fazer um exercício de imaginação mental para conseguir fazer sorrir o avatar. Nós damos uns truques, estratégias, e a pessoa vai aprendendo.".Pai de um jovem com autismo - "o que me aumenta a responsabilidade", diz - Miguel Castelo-Branco conhece bem a importância de procurar novas técnicas de reabilitação terapêutica e fármacos mais eficazes do que os atuais, porque "os que existem, além de não serem eficazes, têm demasiados efeitos secundários", aponta. "Temos de encontrar alternativas mais suaves. Os fármacos que existem atualmente para o autismo são meramente sintomáticos e, diria, paliativos", refere o investigador, com um vasto trabalho reconhecido nacional e internacionalmente na área do autismo..Miguel acredita que é possível controlar os mecanismos de inibição que afetam a comunicação e socialização entre os doentes com autismo. "A nossa ideia é melhorar a capacidade de reconhecerem emoções nos outros e de saberem exprimi-las. E ao contrário do que as pessoas pensam, essa capacidade está lá, está é se calhar numa caixinha. Eles têm é uma grande inibição, ansiedade, stress social. Portanto, esse é o nosso alvo. Ter ensaios clínicos que diminuam essa ansiedade nesse tipo de interação e que lhes aumente a recompensa". E isso é possível combinando o universo dos jogos de realidade virtual com as tais técnicas de neuroestimulação ou neurofeedback, mas também procurando novos fármacos mais eficazes..É o que acontece num projeto europeu em que a equipa de Miguel Castelo-Branco no ICNAS está envolvida, juntamente com o King"s College em Londres, também relacionado com o autismo. "Entrámos num grande clube europeu, que se chama o Aims-2-Trials, e estamos a participar em várias tarefas. Uma delas é testar uma molécula que já existe no mercado, que é a tianeptina, molécula que modula os níveis de serotonina no cérebro. Isto tem muito a ver com ansiedade e depressão, mas também com os comportamentos obsessivo-compulsivos", conta o investigador, com avanços publicados também noutras doenças do cérebro, da neurofibromatose às doenças de Alzheimer, Huntington, entre outras. A complexidade do cérebro continua a ser um fascínio desafiante para o neurocientista, que, confessa, gostaria de "traduzir os códigos neuronais em algo que possa ser útil na doença". Decifrar essa criptografia. "Hoje a inteligência artificial já consegue classificar sinais, mesmo sem os perceber. Mas eu gostaria de ir um bocadinho mais longe. De perceber como é que o cérebro funciona. E acredito que isso me ajude. Se conseguisse isso, ligava os dois mundos: perceber como é que o cérebro funciona e, ao mesmo tempo, usar essa informação para aplicá-la na correção dos mecanismos associados a essas doenças".. rui.frias@dn.pt. Este texto faz parte de uma série de reportagens sobre ciência que o DN está a publicar