DN demonstrou ter mais prudência e sensibilidade do que o ministro Machete

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Três semanas atrás, alertei nesta coluna para a necessidade de os jornalistas se regerem por agenda própria e não submissa ao poder, de tal maneira a desordem dos chamados responsáveis se tem esforçado por ser ordem. Mais se reforça esta prevenção face aos deploráveis acontecimentos dos últimos dias, em que o recurso a chicanas de rábula de cambão e intrujices de vadio foram utilizadas sem rebuço por alguém com altas funções de representação do Estado português.

Siga o leitor os episódios: o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Machete, que ficará no anedotário e nas pilhérias da pequena história como aquele que superou quilometricamente, em gaffes, o recentemente falecido José Veiga Simão, concedeu uma entrevista à Rádio Renascença em que referiu que alguns portugueses, recém--militantes do Estado Islâmico, entre os quais elementos do sexo feminino, já haviam comunicado às famílias a vontade de regressar.

Jornalistas do DN que ouviram a entrevista tiveram um estremecimento: cheirava a inconfidência da grossa, tresandava a irresponsabilidade, saltava à vista um falazar transgressor de uma montanha de normas de prudência, sensibilidade e segurança nacional.

Consultaram-se os serviços - esses sim, responsáveis - e todos os respondentes quase deixavam cair os telefones na ânsia de segurar a cabeça a latejar.

Com o que apurou, o DN fez aquilo que é um bom princípio do jornalismo: um jornalista raramente diz tudo o que sabe; diz menos do que sabe, a benefício de mais confirmações, provas e garantias de não causar danos escusados e irremediáveis. O senhor ministro que, como diplomata, deveria ser ainda mais contido, mostrou só conhecer a cartilha da comadre de soalheiro: fala do que não deve, efabula sobre o que não sabe, tanto lhe faz, o importante é mostrar que "está por dentro" do segredo dos deuses.

(Conheci pelo menos mais dois ministros dos Estrangeiros assim parlapatões. Quando intoxicado pelo álcool, um deles dizia aos jornalistas que com ele seguiam no avião que tinha a ficha secreta de todos os presentes, cena de meter dó; o outro tinha a sorte de o álcool possuir propriedades grudentas que lhe colavam a língua ao palato e só lhe permitiam entaramelar - mas eram ambos inofensivos, exceto o segundo, quando tomou o elevador para a Europa...)

Mesmo já tendo sido divulgadas as palavras do ministro pela rádio, o DN optou, após muita discussão e reflexão, dar a informação por defeito. Disse apenas que as declarações - que não transcreveu - de Rui Machete, além de terem causado imensa perturbação nos serviços de segurança, eram extemporâneas e não confirmadas.

Com abundante inteligência - como prova o que vem a seguir - o ministro e o seu borboleteante séquito aconselhador nem sequer se aperceberam de que todos os outros jornais, nas edições online, já divulgavam as frases irresponsáveis de Sua Excelência.

Mas resolveu investir contra o DN, desafiando-o a abrir o jogo e descendo à baixeza que lhe completa o desenho de caráter de sugerir que este jornal favoreceria o Estado Islâmico, a que chamou muito estrangeirada e pretensiosamente ISIS (EIIL, em português, Estado Islâmico do Iraque e do Levante).

E fez mais o obstinado ministro: caso o DN estivesse mal informado, ele tomava a iniciativa de enviar a transcrição da entrevista - que já estava na página online da Rádio Renascença - mas onde ele, com uma honestidade muito sui generis, eliminava a referência às jovens com vontade de desertar. Antes manquejasse o ministro, que mais difícil se tornaria detetar-lhe as falsidades e apocrifias!

Denunciada a rasura pelo DN, vieram os serviços do ministro escusar-se com um "erro técnico". Tal a pontaria do erro técnico! Exatamente na única frase que era o centro da controvérsia.

Mas não se ficou por aqui o ministro: um partido reclamou uma comissão parlamentar à porta fechada para debater o assunto. Que não, replicou, galhardo, o ministro: porta aberta, pois então! Como ele nem sequer sente vergonha do que fez, quer jogar com o bom senso dos parlamentares que têm repugnância em drenar em público o pus da chaga institucional em que o ministro se converteu. Para não falar da gravidade do que disse e que, noutro país, mesmo com menos tradições civilizacionais, daria demissão voluntária e discussão judicial sobre a necessidade ou não de penitência em calabouço. Isso não acontece em Portugal porque a desvergonha é a lei dos espertos, que beneficiam das im(p)unidades sacramentais de cargos que, à força de serem servidos por almocreves, perderam toda a vénia e respeito público.

Rui Machete é apenas mais um que não sai pela porta pelo seu pé nem é defenestrado porque Passos Coelho não vê, Paulo Portas não ouve (está sempre muito longe, desesperado a tentar ouvir a chegada dos sapatos milionários de Carlos Slim nesta sua viagem ao México de "sucesso e peras"... e esperas, acrescento eu). E Cavaco Silva não fala, penando, em fim de carreira, como uma maldição, a autoria da frase mais descortês e cruel que foi dita nos últimos 40 anos sobre um Presidente da República, no caso, Mário Soares: "Vamos ajudar o senhor Presidente a terminar com dignidade o seu mandato." Deus não dorme, dizem os crentes. Mas seja Deus, Osíris ou a Ísis de Machete, alguém está a fazer Cavaco Silva beberricar em colherezinhas o seu próprio veneno: ninguém o ajuda a terminar com dignidade o mandato; não fala, tartamudeia, mastiga em seco, engrola palavras e ideias, dá-se a fanicos, enfim, quem com ferros mata...

Não há de ser, portanto, pelo lado de quem deveria ter responsabilidades altas no Estado, que Rui Machete vai prestar contas. Mas não escapa ao juízo da opinião pública nem ao da consciência, se ainda tiver umas aparas dessa coisa incómoda.

Ele veio dizer para a rádio que militantes tinham comunicado às famílias a vontade de deixarem o Exército Islâmico. Soube como? Pelos militantes? Pelas famílias? Pelos serviços secretos que foram informar este irresponsável megafone com pernas e nenhuma prudência?

Vejamos pelo lado das famílias: como é que estas e outras, no futuro, se sentirão com confiança para pedir discreto apoio ao Estado para salvar os seus elementos em perigo se a meio do percurso aparece um ministro a pôr a boca no trombone? E como vão confiar nos serviços de segurança que assim se deixam atraiçoar por um ministro palrante e psitacista?

Agora os militantes: se for verdade que querem desertar, o ministro Rui Machete pôs em risco as suas vidas, porque não é usual organizações terroristas fanáticas deixar os dissidentes sair com a cabeça presa ao pescoço; e, se isso não acontecer, a suspeita de que a "deserção" foi combinada jamais permitirá um regresso de reintegração, porque houve um ministro fala-barato que desfez com botifarras a discrição e a sensibilidade que a situação exigia.

Os jornalistas do DN deram ao chefe de diplomacia uma lição de prudência e sensibilidade. Mas será que ele consegue apreendê-la?

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