DMZ: A um passo de distância entre a Guerra e a Paz

A portuguesa Rute Vinagre fez parte de um grupo de estrangeiros de meia centena de países que participou num programa sul-coreano de promoção da história e cultura, que incluiu uma visita à zona fronteriça com a Coreia do Norte. E enviou o relato ao DN.
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No passado dia 22 a 24 de agosto, mais um evento do programa G50 K-Academy decorreu na Coreia do Sul. Este programa, criado e financiado pelo Ministério da Educação Coreano procura promover a cultura e história coreana no contexto internacional. Desta forma, selecionou residentes estrangeiros de 50 países diferentes para representar a sua terra natal e embarcar nesta jornada. No contexto deste programa, a segunda viagem realizada foi à DMZ conhecida como a Zona Desmilitarizada entre a Coreia do Sul e a Coreia do Norte que, apesar do que o nome indica, é uma das zonas com maior número de forças militares e armamento do mundo inteiro. Todos os dias deparamo-nos com notícias sobre testes de mísseis ou ameaças da Coreia do Norte, mas é difícil saber ao certo a severidade da situação ou vivenciá-la em primeira mão. Como Portugueses e Europeus, estamos tão habituados a poder viajar livremente entre fronteiras sem grandes formalidades que quase nos esquecemos que elas existem, não seja claro, pela imediata diferença linguística aquando se entra noutro país ou região. Mas, então e a Coreia do Sul e Coreia do Norte? A realidade é que, estes dois países, apesar de partilharem em grande parte a mesma língua e cultura, têm uma fronteira tão bem guardada, que passam por completos desconhecidos. Nós fomos descobrir como é a vida das pessoas que vivem nesta fronteira, qual o perigo que enfrentam diariamente, e embarcar numa jornada que revolucionou a maneira como vemos a Coreia do Sul.

A viagem começou em Seul, capital da Coreia do Sul, e passou pelo Centro Internacional das Garças junto à DMZ. Surpreendentemente, as garças na Coreia, são maioritariamente avistadas na DMZ assim como é o caso de certos tipos de plantas que florescem exclusivamente na área e dos mosquitos da malária que são uma forte predominância na região. Neste centro, recebemos instruções sobre como proceder dentro da zona desmilitarizada e quais as regras de segurança a manter. Daqui procedemos então para a DMZ e é aqui que notamos logo uma diferença completa no ambiente. Depois de longos minutos no autocarro para a área da DMZ em Cheorwon, chegamos a um posto militar onde nos foram retirados os telemóveis, por questões de segurança e para impedir que informações governamentais privadas fossem expostas. Contaram cada pessoa que se encontrava no autocarro e, acompanhados por 2 carros militares e uma ambulância, demos entrada na DMZ. Sozinhos, no que parecia uma terra deserta, observamos as janelas e tudo à vista era campo e montanhas. A Coreia bastante desenvolvida, sempre cheia de vida e movimento, resumia-se agora apenas a terra e postos militares, estradas vazias e ruas sem pessoas. Senti, e acredito que os meus colegas diriam o mesmo, que se tratava de uma extensão da Coreia do Norte pois era um mundo completa e inacreditavelmente à parte. Por mais que bem guardados pelas forças militares coreanas e acompanhados dos funcionários do governo, sente-se um certo receio e noção do perigo e severidade da situação.

Esta zona desmilitarizada só é visitada pelos militares que trabalham na área ou pelos agricultores que praticam ali a agricultura há décadas. Curiosamente, a agricultura teve uma forte influência na atual disposição da região, na medida em que, foi por força dos agricultores que a área se estendeu por tantos quilómetros. Antigamente, a área era muito maior, mas os agricultores foram plantando junto ao começo da zona desmilitarizada e aos poucos ocuparam uma parte maior da terra, o que levou à diminuição da área da DMZ. Este forte interesse no cultivo ao ponto de passar fronteiras é de certa forma semelhante ao que vimos muitas vezes em Portugal, nomeadamente na disputa das terras agrícolas na zona de Trás-os-Montes.

Dentro da zona desmilitarizada, visitamos a estação de Weoljeongri que é a estação de comboios mais próxima da fronteira da DMZ (frente Sul). Nesta estação, podemos ver um comboio parado do qual resta apenas a traseira. Neste local, durante a Guerra da Coreia, ocorreu uma luta de grande dimensão que levou à retirada dos soldados norte-coreanos, mas não sem antes levarem a frente do comboio com eles. Daí restar apenas a traseira deste veículo que fica continuamente parado na estação e que é fortemente representativo da história da divisão da Coreia. Junto a este relevante elemento histórico, lê-se "O Cavalo de Ferro quer Correr", uma referência não só ao comboio em questão, mas também àquela zona conhecida como Miradouro do Triângulo de Ferro.

O seguinte ponto de visita foi o Miradouro da Paz de Ganghwa, aberto ao público em setembro de 2008, na zona norte da Linha de Controlo Civil, com o propósito de promover a paz e a unificação da península coreana. Neste local, podemos observar à distância a torre de receção e transmissão Kaesong, a montanha Songaksan e uma vila propaganda norte-coreana sendo um dos únicos locais na Coreia do Sul, onde é possível observar a olho nu a vida dos residentes norte coreanos. Um dos pontos de visita mais marcantes desta jornada foi o Segundo Túnel, numa experiência quase digna de um filme. Este túnel, descoberto em 1975, foi usado pela Coreia do Norte para invadir a Coreia do Sul e tem capacidade para permitir a deslocação de cerca de 30 000 soldados por hora. Antes de entrarmos, foram-nos dados e colocados capacetes e equipamento de segurança, visto que, a altura da gruta, apesar de variar, rondava à volta dos 160 centímetros. A entrada começava íngreme, seguida por escadas que descemos por vários minutos até chegarmos ao solo, o qual percorremos pelo que seriam talvez 15 minutos, mas que pareceram uma eternidade. A chuva no exterior intensificou a humidade dentro da gruta, sendo que o chão estava coberto de poças, as paredes húmidas e o som da água iminente. Andamos agachados, cuidadosamente, pelos túneis estreitos, entre sons de uns e outros a bater com a cabeça no teto, até chegarmos ao que parecia o fim daquela gruta. Ali encontrava-se uma zona mais ampla do túnel, quase à semelhança de uma salinha, com bancos de plástico para nos sentarmos e uma porta de metal que tanto despertava a curiosidade de mentes jovens como as nossas. O soldado que nos guiou por aquele desafiante percurso declarou então algo que carregou um calafrio pelos nossos corpos: "Se passarmos esta porta, a 300 metros daqui, está a Coreia do Norte. Vocês são, neste momento, as pessoas mais próximas da Coreia do Norte no nosso país inteiro. Se correrem, em menos de 5 minutos, estão lá." A voz que nos contava isto soava tão calma e relaxada que nunca se acreditaria poder causar tanto tremor e tumulto entre todos nós que lá nos encontrávamos.

Por último, naquele que foi o local mais marcante da visita, fomos a Inje, dentro do DMZ, ao 1052 Goji, local que, num espaço de 70 anos, foi pela primeira vez aberto ao público em setembro de 2022. Até a altura da nossa visita em agosto, só mil pessoas tinham sido concedidas permissão desde a sua abertura. Este local encontrava-se fechado por 2 meses durante o verão e foi aberto para que o pudéssemos visitar sendo que fomos os primeiros estrangeiros a receber permissão de entrada assim como o maior grupo. Por causa da chuva contínua, a vista do miradouro era bastante limitada o que tornou difícil ver a Coreia do Norte à distância assim como impossibilitou a tour completa ao 1052 Goji. No entanto, todo o grupo dos 50 representantes, conseguiu sentir a importância do local onde nos encontrávamos e ficar extremamente agradecidos pelo esforço e tempo que o governo coreano dedicou para que pudéssemos visitar não só este local extremamente simbólico como também todos os outros locais que nos permitiram adquirir um conhecimento muito mais profundo e duradouro da história da Coreia.

Ser capaz de vivenciar todos estes elementos em primeira mão com toda a segurança foi, não só a experiência de uma vida, como um momento de autorreflexão para todos nós. A noção do impacto da guerra décadas depois do acontecimento e a sua influência em centenas de milhares de vidas, criou em nós um forte sentimento de compaixão, mas também medo. A forma como esta zona parou no tempo é talvez o elemento mais representativo e simbólico de todos. A violência e guerra conseguiram criar um choque capaz de capturar o elemento mais efémero de todos, o tempo, entre aquela zona que chamamos de DMZ. Uma terra quase vazia, de agricultores e militares cujo aspeto permanece tão bem preservado e imutável pelas décadas que passaram. Quando pensamos nas pessoas que viveram para sempre afastadas das suas famílias, separadas por uma grande barreira, não só simbólica do ego do homem, mas também das duas faces do ser humano, refletimos sobre a dor daqueles que faleceram sem que pudessem ser reunidos com os seus entes queridos, sem saber sequer notícias desde a separação e com isso, um forte desejo de paz cresce em nós. Seria fácil pensar que todos os militares e pessoas que vivem ali, guardariam ressentimentos ou falariam apenas de dor e sofrimento, mas desde os guias turísticos, aos soldados, aos agricultores, todas as palavras que ouvíamos eram de esperança por uma península segura, pacífica e sem guerra. Os seus olhos brilhavam com o sonho de pacificação e unificação, de uma Coreia que recupera a sua história e cultura na totalidade, mais forte que nunca. Podemos apenas esperar e acreditar, que isto será muito mais que um sonho, mas sim um passo para a frente em direção a um futuro de paz e prosperidade.

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