Boris Johnson chega ao topo com o Brexit bloqueado nas mãos, depois de ter sido um dos seus criadores. O tempo e o modo correm a desfavor de uma saída ordenada, o que até pode levar à reversibilidade do Brexit. Os próximos três meses dirão quem vai mais cedo para casa, se Boris, se o Brexit..A ambição de chegar a Downing Street faz do percurso de Boris Johnson uma das histórias mais previsíveis da política internacional contemporânea. Bem ou mal, com maiores ou menores tropeções pelo caminho, há duas décadas que vamos acompanhando a sua preparação. Não foi metódica, a política vive mais de oportunidade do que de método, mas foi uma maratona. Para um impaciente crónico, é obra..Desvalorizado por uns e gozado por outros, a verdade é que chegou ao topo. E quando percebeu que a ambição e a oportunidade (referendo) lhe dariam a ascensão com o estrondo e o choque de que tanto gosta, levou tudo à frente como tão bem sabe fazer. Tanto lhe faz que seja um miúdo num campo de râguebi ou um adversário no partido. Boris Johnson está em competição permanente consigo e com todos, o que lhe confere um carisma especial, mas também revela de forma aberta a amplitude de carácter com que se movimenta na política: prefere a mentira à verdade, o deslumbramento à sensatez, a histeria à parcimónia, o disparate à razão..Nenhuma das suas anteriores funções executivas o recomenda para o cargo de primeiro-ministro, mas não se pode argumentar que não tenha lá chegado por método aceite e reconhecido por todos, mesmo que a sua legitimidade não venha de uma eleição geral em que poderia defender um programa e ser premiado por isso. Afinal de contas, seguindo tantos outros antecessores, Boris chega a primeiro-ministro depois de eleito por 0,2% dos britânicos. Não é ilegítimo, de forma alguma é ilegal, mas é curto para lidar com o sensível momento britânico. E são várias as razões que reforçam esta ideia..A primeira está na própria natureza do governo escolhido por Boris Johnson. Para não irmos mais longe, não houve desde a transição entre Thatcher e Major (1990) tantos membros do cabinet que ou saíram pelo seu pé ou foram demitidos. Na altura, apenas quatro caíram nessa categoria, subindo para 11 de Blair para Brown (2007) e 13 de Cameron para May (2016). Com Boris Johnson foram 19 os que não transitaram, um prémio à lealdade mas igualmente uma fotografia do partido, polarizado na avaliação ao novo primeiro-ministro. Além do recorde de saídas, também há outro nas entradas de novos rostos com assento no cabinet (13). Ou seja, houve necessidade de fazer subir gente com menos experiência por falta de disponibilidade dos mais calejados. Pode resultar, mas o par de meses que aí vem pedirá maturidade política. Ou seja, a falta de coesão no partido conservador cresceu com a eleição de Boris Johnson, o que fragiliza a sua base de legitimidade curta em momento de tensão política diária..A segunda está na fotografia tirada com alta definição ao trajeto eleitoral de cada um dos membros do núcleo duro, quer no referendo quer nas três votações ao acordo de retirada da UE. Dos 22 que têm assento permanente no cabinet (primeiro-ministro incluído), a maioria (13) votou pela permanência, o que não quer dizer que desde então não se tenham acomodado às novas circunstâncias. Dificilmente estariam no governo se não o fizessem. Já sobre as três votações, apenas dois rejeitaram sempre o acordo (Priti Patel e Theresa Villiers) e só três votaram contra nas duas primeiras vezes, aprovando-o na última. Dois desses chamam-se Boris Johnson e Dominic Raab, este último o negociador britânico do acordo, hoje ministro dos Negócios Estrangeiros..Estes dados ilustram pelo menos duas dimensões. Por um lado, parece claro que o grupo é bastante mais movido pela ambição de poder do que propriamente por uma linha coerente de atuação ideológica. Como se pode ver, a esmagadora maioria esteve sempre ao lado de Theresa May nas três votações ao acordo de retirada. Isto pode querer dizer que há mais pragmatismo sobre a mesa, também conhecido por cambalhotas políticas. Poucos políticos definem tão bem esta predisposição como Boris Johnson..Por outro lado, estes dados voltam a confirmar que oBrexit (antes e depois do referendo) foi sempre e acima de tudo uma luta de poder dentro do Partido Conservador. Começou por ser a fórmula prometida para Cameron se manter; passou pela primeira transição após o choque do referendo; e continua agora depois do desgaste brutal já na etapa pós-acordo. A questão fundamental é que tudo isto vai girando em torno de uma dupla questão existencial para o Reino Unido: conter ou não os danos da saída da UE e, não menos importante, conter ou não os danos da dissolução do próprio reino. Em cima de uma crise política com efeitos graves na economia, vive-se também uma crise constitucional nas Ilhas Britânicas. Um quadro tão perigoso merecia outra responsabilidade partidária coletiva, outros protagonistas políticos e uma cautela maior com os mecanismos de legitimação de novos decisores perante tamanhos desafios..É aqui que chegamos à terceira razão, em resultado de uma fuga permanente a eleições antecipadas. A maioria parlamentar que tem suportado o governo conservador minoritário é frágil e dispõe apenas, na prática, de mais dois deputados do que a oposição. Além disso, assenta num apoio unionista intransigente quanto ao conteúdo do acordo sobre a Irlanda do Norte. À partida, com a expectativa gerada pelo novo primeiro-ministro, se esta questão não for alterada (e ninguém nos 27 ou na Comissão a quer reabrir), esse suporte a Boris Johnson cairá. É ainda provável que os conservadores percam para o Lib Dem o deputado na circunscrição galesa que vai a votos a 1 de agosto. Ou seja, na prática, existe apenas maioria de um único deputado nos Comuns. E mesmo que tenhamos ouvido promessas recentes de lealdade, serão muitos os conservadores a desejar curta vida a este governo se a saída sem acordo for iminente. Aliemos a tudo isto a intenção da oposição em apresentar uma moção de censura, o que, num quadro de pré-aprovação algures em setembro ou outubro, pode levar Boris Johnson a dar a milésima cambalhota da sua vida e convocar eleições, indo a jogo para não ser humilhado, pedindo a Bruxelas uma extensão nova do prazo, evitando-se assim a saída desordenada, a proliferação de danos internos e os impactos negativos nos países mais expostos, como é o caso de Portugal. Em último caso, com eleições abertas, Bojo pode acabar por ser o motivo que faltava à reversibilidade do Brexit..Até lá, o verdadeiro artista vai entreter a plateia, misturar a sua arte, fazer a passagem de música no momento certo, dar ao público o que ele quer, salvar a sua atuação e seguir em frente. Foi sempre assim o maravilhoso mundo de Boris Johnson..Investigador universitário
Boris Johnson chega ao topo com o Brexit bloqueado nas mãos, depois de ter sido um dos seus criadores. O tempo e o modo correm a desfavor de uma saída ordenada, o que até pode levar à reversibilidade do Brexit. Os próximos três meses dirão quem vai mais cedo para casa, se Boris, se o Brexit..A ambição de chegar a Downing Street faz do percurso de Boris Johnson uma das histórias mais previsíveis da política internacional contemporânea. Bem ou mal, com maiores ou menores tropeções pelo caminho, há duas décadas que vamos acompanhando a sua preparação. Não foi metódica, a política vive mais de oportunidade do que de método, mas foi uma maratona. Para um impaciente crónico, é obra..Desvalorizado por uns e gozado por outros, a verdade é que chegou ao topo. E quando percebeu que a ambição e a oportunidade (referendo) lhe dariam a ascensão com o estrondo e o choque de que tanto gosta, levou tudo à frente como tão bem sabe fazer. Tanto lhe faz que seja um miúdo num campo de râguebi ou um adversário no partido. Boris Johnson está em competição permanente consigo e com todos, o que lhe confere um carisma especial, mas também revela de forma aberta a amplitude de carácter com que se movimenta na política: prefere a mentira à verdade, o deslumbramento à sensatez, a histeria à parcimónia, o disparate à razão..Nenhuma das suas anteriores funções executivas o recomenda para o cargo de primeiro-ministro, mas não se pode argumentar que não tenha lá chegado por método aceite e reconhecido por todos, mesmo que a sua legitimidade não venha de uma eleição geral em que poderia defender um programa e ser premiado por isso. Afinal de contas, seguindo tantos outros antecessores, Boris chega a primeiro-ministro depois de eleito por 0,2% dos britânicos. Não é ilegítimo, de forma alguma é ilegal, mas é curto para lidar com o sensível momento britânico. E são várias as razões que reforçam esta ideia..A primeira está na própria natureza do governo escolhido por Boris Johnson. Para não irmos mais longe, não houve desde a transição entre Thatcher e Major (1990) tantos membros do cabinet que ou saíram pelo seu pé ou foram demitidos. Na altura, apenas quatro caíram nessa categoria, subindo para 11 de Blair para Brown (2007) e 13 de Cameron para May (2016). Com Boris Johnson foram 19 os que não transitaram, um prémio à lealdade mas igualmente uma fotografia do partido, polarizado na avaliação ao novo primeiro-ministro. Além do recorde de saídas, também há outro nas entradas de novos rostos com assento no cabinet (13). Ou seja, houve necessidade de fazer subir gente com menos experiência por falta de disponibilidade dos mais calejados. Pode resultar, mas o par de meses que aí vem pedirá maturidade política. Ou seja, a falta de coesão no partido conservador cresceu com a eleição de Boris Johnson, o que fragiliza a sua base de legitimidade curta em momento de tensão política diária..A segunda está na fotografia tirada com alta definição ao trajeto eleitoral de cada um dos membros do núcleo duro, quer no referendo quer nas três votações ao acordo de retirada da UE. Dos 22 que têm assento permanente no cabinet (primeiro-ministro incluído), a maioria (13) votou pela permanência, o que não quer dizer que desde então não se tenham acomodado às novas circunstâncias. Dificilmente estariam no governo se não o fizessem. Já sobre as três votações, apenas dois rejeitaram sempre o acordo (Priti Patel e Theresa Villiers) e só três votaram contra nas duas primeiras vezes, aprovando-o na última. Dois desses chamam-se Boris Johnson e Dominic Raab, este último o negociador britânico do acordo, hoje ministro dos Negócios Estrangeiros..Estes dados ilustram pelo menos duas dimensões. Por um lado, parece claro que o grupo é bastante mais movido pela ambição de poder do que propriamente por uma linha coerente de atuação ideológica. Como se pode ver, a esmagadora maioria esteve sempre ao lado de Theresa May nas três votações ao acordo de retirada. Isto pode querer dizer que há mais pragmatismo sobre a mesa, também conhecido por cambalhotas políticas. Poucos políticos definem tão bem esta predisposição como Boris Johnson..Por outro lado, estes dados voltam a confirmar que oBrexit (antes e depois do referendo) foi sempre e acima de tudo uma luta de poder dentro do Partido Conservador. Começou por ser a fórmula prometida para Cameron se manter; passou pela primeira transição após o choque do referendo; e continua agora depois do desgaste brutal já na etapa pós-acordo. A questão fundamental é que tudo isto vai girando em torno de uma dupla questão existencial para o Reino Unido: conter ou não os danos da saída da UE e, não menos importante, conter ou não os danos da dissolução do próprio reino. Em cima de uma crise política com efeitos graves na economia, vive-se também uma crise constitucional nas Ilhas Britânicas. Um quadro tão perigoso merecia outra responsabilidade partidária coletiva, outros protagonistas políticos e uma cautela maior com os mecanismos de legitimação de novos decisores perante tamanhos desafios..É aqui que chegamos à terceira razão, em resultado de uma fuga permanente a eleições antecipadas. A maioria parlamentar que tem suportado o governo conservador minoritário é frágil e dispõe apenas, na prática, de mais dois deputados do que a oposição. Além disso, assenta num apoio unionista intransigente quanto ao conteúdo do acordo sobre a Irlanda do Norte. À partida, com a expectativa gerada pelo novo primeiro-ministro, se esta questão não for alterada (e ninguém nos 27 ou na Comissão a quer reabrir), esse suporte a Boris Johnson cairá. É ainda provável que os conservadores percam para o Lib Dem o deputado na circunscrição galesa que vai a votos a 1 de agosto. Ou seja, na prática, existe apenas maioria de um único deputado nos Comuns. E mesmo que tenhamos ouvido promessas recentes de lealdade, serão muitos os conservadores a desejar curta vida a este governo se a saída sem acordo for iminente. Aliemos a tudo isto a intenção da oposição em apresentar uma moção de censura, o que, num quadro de pré-aprovação algures em setembro ou outubro, pode levar Boris Johnson a dar a milésima cambalhota da sua vida e convocar eleições, indo a jogo para não ser humilhado, pedindo a Bruxelas uma extensão nova do prazo, evitando-se assim a saída desordenada, a proliferação de danos internos e os impactos negativos nos países mais expostos, como é o caso de Portugal. Em último caso, com eleições abertas, Bojo pode acabar por ser o motivo que faltava à reversibilidade do Brexit..Até lá, o verdadeiro artista vai entreter a plateia, misturar a sua arte, fazer a passagem de música no momento certo, dar ao público o que ele quer, salvar a sua atuação e seguir em frente. Foi sempre assim o maravilhoso mundo de Boris Johnson..Investigador universitário