"Diziam para ficar quieta para não me levarem para a salinha"
"Eles voltaram bem quietos, bem amachucados, com sinais de que tinham apanhado, cabeça baixa. A gente teve medo até de perguntar, pensou que ia apanhar também. É uma covardia muito grande o que eles fazem ali."
Quem conta é Katia Gonçalves dos Santos, 36 anos, brasileira de Curitiba (Paraná). Esteve quatro dias no Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do aeroporto de Lisboa, onde o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras coloca os estrangeiros a quem recusa entrada no país, e onde Ihor Homeniuk morreu. Não estava lá quando isso sucedeu - chegou a Portugal a 6 de fevereiro e partiu a 10 - mas assistiu a uma situação de agressões na mesma divisão onde o cidadão ucraniano terá sido também espancado.
"Foi com dois cabo-verdianos que apanharam dois dias seguidos. Eles teriam uns 38, 40 anos. Estavam sempre reclamando, perguntavam a todo o momento quando iam voltar, quando era o voo. Havia uma brasileira que tinha mais tempo ali e dizia 'não faz perguntas'. Porque quando você está lá dentro não fala nada, fica quieta com medo. Mas eles insistiam e um dia levaram-nos para um quartinho escuro que tem lá, uma salinha pequena. E apanharam de mais. Muito muito. Só escutava alguns gritos porque eles tinham tudo fechado, não se ouvia bem. Apanharam durante o dia e depois foram lá buscar eles de noite também."
Perguntada sobre quanto tempo durou o espancamento, não sabe dizer. "Acho que ficaram por horas na salinha, mas a gente não tinha relógio, perdia a noção. Só sabíamos o horário pela comida. Porque tiram tudo da gente, telemóvel, tudo." Mas de uma coisa está certa: "Da segunda vez eles saíram de cadeira de rodas. Não sei para onde foram, se levaram eles para o hospital ou para o avião, não deu para perceber porque fui embora a seguir."
As agressões, crê, terão ocorrido entre o dia 6 e o dia 8 de fevereiro. Katia também não sabe quem bateu nos homens - não lhes perguntou, "não entendia bem o que eles falavam". Do lugar onde estava, "só se via o movimento, as sombras no vidro." Mas está convicta de que os agressores seriam os inspetores do SEF e não os seguranças da empresa privada, a Prestibel, que faziam a gestão do espaço - na altura em que Katia lá esteve, como quando Ihor lá morreu, não havia nenhum inspetor do SEF em permanência no EECIT. Neste momento, após as obras de que foi alvo o EECIT após a morte de Ihor, e de acordo com o que foi anunciado, estarão sempre inspetores do SEF no local.
"Nunca imaginei que uma coisa assim pudesse acontecer em Portugal. Tenho amigos que já viajaram para aí e foi tudo bem e certinho. Fiquei muito traumatizada mesmo."
O relato de Katia coincide com o de outra cidadã brasileira que esteve no EECIT durante muito mais tempo e chegou mesmo a conhecer Ihor, tendo contado já ao DN o que ali viveu e viu. Pedindo para não ser identificada com receio de represálias, Márcia - foi o nome que lhe demos - referiu igualmente o espancamento dos dois cabo-verdianos, e o facto de terem sido levados de cadeira de rodas.
Também a Ihor, recorde-se, tentaram, na tarde de 12 de março, apesar dos sinais de agressões que várias testemunhas apontam, mais o facto de estar de "calças em baixo" e "urinado", levar para o avião numa cadeira de rodas. Os dois inspetores que foram buscá-lo para o levar até ao voo de repatriamento ainda tentaram sentá-lo na dita cadeira. Mas Ihor desfaleceu e pensaram que tinha morrido. Era falso alarme, mas por pouco tempo: o cidadão ucraniano deixaria mesmo de respirar pouco depois, e nem a equipa da Cruz Vermelha que está de prevenção no aeroporto nem o INEM, chamado por esta, conseguiriam reanimá-lo.
À Polícia Judiciária, um dos inspetores do SEF que tentou transportar Ihor para o avião na cadeira de rodas explicou ser costume usá-la quando os "passageiros" - é assim que na terminologia da corporação são referidos os detidos do EECIT - estão manietados de pés e mãos, como era o caso de Ihor.
Sem ter sido alvo de qualquer agressão física, Katia considera mesmo assim ter sido brutalizada. "Aquilo ali é uma prisão. Toda a gente nos maltrata, fica falando alto, bem grossos, muito mal-educados. Tratam as pessoas sem nenhuma consideração mesmo, em condições horríveis. Tinha lá até mulher com criança, havia uma brasileira com uma menina de uns cinco anos que ficou junto com a gente. A criança estava assustada todo o momento, não tinha nem espaço para ela dormir. E tinha mulher grávida com a barriga bem grande - tudo misturado."
Garante que planeava ficar apenas 15 dias e tinha viagem de regresso marcada - um dos alegados "sinais" de imigração ilegal é não haver viagem de volta marcada. "Eles me fizeram regressar com a viagem de volta do meu bilhete, que foi antecipada. Tinha programado esta viagem por dois anos, queria conhecer o país. Mas voltei a casa exausta, morta, a sentir-me criminosa. Tenho intenção de voltar um dia, mas que seja diferente, que melhorem a situação do SEF."
É isso que a leva a falar: denunciar para que melhore, para que ninguém mais passe o que passou e viu passar. E está, afirma ao DN, disponível para testemunhar perante as autoridades (a Inspeção-Geral da Administração Interna contactou o DN por causa do anterior testemunho dado ao jornal, a propósito do qual o ministro da Administração Interna ordenou a abertura de um inquérito).
Os maus-tratos a Katia começaram logo na primeira barragem do SEF: "Cheguei no aeroporto e levaram para uma salinha, retiveram a bagagem, fizeram um monte de perguntas. Perguntaram: 'Que veio fazer aqui?' Vim para turismo, respondi. O cara falou bem rústico e bravo: "Você veio aqui para outros fins, para a prostituição." Aí comecei a chorar, entrei em desespero. A gente não tem chance de falar, eles não dão crédito a nada do que dizemos. Depois fizeram uma revista em que fiquei completamente nua. Tiraram tudo de mim, até o arame do sutiã - tive de ficar sem o sutiã todo o tempo que lá estive presa. E fizeram-me assinar um monte de papéis. A gente nem tinha tempo de ler o que estava assinando, é muita pressão. Estive umas seis a oito horas ali, estava desesperada já. Eles diziam que iam me levar a um sítio mas que não tinha como levar uma pessoa sozinha, então fiquei ali esperando. A dada altura me deram uma sopa com pão, tinha muita fome."
Notou que os homens na mesma situação pareciam ser ainda mais maltratados. "Eles tratavam os homens supermal - punham-nos numa salinha e eles vinham de lá de uma maneira, não sei que faziam com eles."
Quando finalmente a levaram, "num carro com mais gente", julgando que ia para "um alojamento", teve outro choque. "Quando cheguei me tiraram tudo, não deixaram pegar minha bagagem - fiquei com a mesma calcinha todos aqueles dias, tinha de lavar na pia, naquele banheiro sujo. E você tem de tomar banho e voltar a vestir a mesma roupa, porque não tem outra."
E caso apareça a menstruação, como aconteceu com Silvânia Lília da Silva, também brasileira, 47 anos, é preciso implorar. "Só estive um dia ali mas fiquei menstruada e desesperada, porque só tinha a roupa do corpo, nem minha bolsinha deixaram comigo. Na minha bolsa tinha um nécéssaire com absorvente, tudo - mas trancaram e não deixaram ir lá. Pedia ao agente [segurança da Prestibel] que me desse um absorvente e ele dizia 'tem de esperar'. Fui tomar um banho para não passar vergonha. Só me deram um absorvente à noite, estava já toda suja. Felizmente tinha umas calças pretas, foi a minha sorte. Só chorava, não conseguia entender o porquê dessa maldade. Só dizia 'Meu deus, isso aqui é um presídio.' Foi terrível, nunca pensei passar por uma coisa dessas na vida."
Silvânia chegou a 21 de janeiro às cinco da manhã e viajou de volta logo a 22. Não assistiu a nenhuma agressão mas conta que estava no EECIT um homem negro, que crê ser da Nigéria, que disse ter apanhado. "Ele falava inglês, era uma moça lá que traduzia. Disse que tinha desobedecido porque eles falavam para estar quieto, ou queriam que falasse algo, e batiam nele. Mostrou as marcas na pele. Pensei: pronto, vou apanhar, ser expulsa do país, vou aparecer na TV como traficante." Havia lá também duas jovens, diz, que tinha sido sujeitas a revista integral, como Katia. "Não eram brasileiras. Diziam que elas tinham droga, fizeram elas ficar nuas."
Há outra situação que a impressionou: "Tinha uma senhora com duas crianças que choravam muito e os agentes foram ter com ela e disseram que se não calava as crianças que lhas tiravam."
Silvânia assevera que tinha também, como Katia, passagem de volta e hotel marcado, mas que isso não serviu de nada.
"Me abordaram e disseram que não tinha condições para entrar. Ficaram me segurando lá, me perguntando quem comprou minha passagem, quantos euros eu tinha - era 400 em espécie mais cartão de crédito - e diziam que as minhas intenções eram outras, me acusavam de mentir: 'Todas vocês dizem isso, tenho a certeza que a razão da sua vinda é outra.' Insinuaram que eu vinha para a prostituição. Disse que sou casada e mandaram mostrar a foto do meu marido. E disseram que eu tinha de assinar ou 'a gente assina por você'. Perguntei se não tinha direito a advogado e responderam que não: 'Porque nós não acusámos você formalmente. Não precisa porque nada do que a senhora fizer vai resolver, não adianta tentar. Porque já tomámos a decisão.'"
Só foi levada para o EECIT ao fim de muitas horas - "Cheguei às cinco e só subi devia ser uma da tarde" - mas enquanto esteve a ser questionada e à espera não lhe deram nada para comer ou beber, nem sequer a deixaram ir à casa de banho. "Só na hora que ia para o CIT é que me deixaram ir ao banheiro. Estava já muito apertada, supliquei." Nessa altura, diz Silvânia, "já só chorava". Quis falar para a família mas "disseram que só podia falar dois minutos". Não a deixaram ligar logo, porém. "Às duas da tarde deixaram-me finalmente telefonar. Quando disse 'estou presa' o meu marido perguntou 'como assim?' e aí o moço que estava lá ouvindo a conversa disse 'acabou o tempo'."
O mesmo aconteceu com Katia: usou os dois minutos para ligar para a mãe, disse que estava presa e desligaram-lhe a chamada. "Minha mãe ficou ainda mais apavorada."
Cristilene Pastana, 38 anos, também brasileira, teve experiência semelhante. "Liguei ao meu cunhado, que vive em Portugal, dizendo que precisava de ajuda, de um advogado. O senhor lá do CIT, que parecia que tinha prazer em me humilhar, disse que se eu continuava a dizer que precisava de ajuda ele acabava com a minha chamada. E acabou."
Técnica de farmácia e funcionária pública na cidade de Ananindeua, no estado do Pará, Cristilene tem o marido e o filho a viver em Portugal, onde há mais família. Explica ao DN que o filho de 16 anos joga futebol num clube algarvio e que por causa desse sonho dele a família se separou: "Tivemos de nos sacrificar pelo projeto do nosso filho. Ele conseguiu uma vaga num dos times de futebol aí - e optámos por nos sacrificar por ele."
Vinha a Portugal de férias e para o ver, com viagem de regresso marcada para 28 dias depois. Mas não conseguiu: chegou a 21 de janeiro e foi recambiada de volta numa semana, sem sair do aeroporto e sem sequer conseguir ver a cunhada, que vive em Lisboa e foi ao aeroporto pedir para se encontrar com ela: "Disseram-lhe que não era advogada e não tinha o porquê entrar ali."
Aquilo foram dias de terror, comenta. "Começou mal cheguei. A agente que me atendeu era estagiária, fez algumas perguntas e depois chamou outra, mais velha, que me disse, a gritar: "Venha cá. Você vem cá no meu país e julga que vem mentir para mim". Foi uma humilhação. Me levaram a outro agente que não era tão grosso mas pressionava e dava as respostas por mim. Repeti que era funcionária pública, disse em que trabalhava, que tinha o marido e filho a viver em Portugal, a verdade toda, não escondi nada. E no fim ele disse 'infelizmente você não entrar no país, não está sendo deportada, mas não vai entrar. Vai ser devolvida'. E ameaçou: 'Se você não assinar, vai sair daqui presa e deportada.' Fui obrigada a assinar um papel cheio de coisas que não tinha dito - ele escreveu lá que que eu dissera que queria trabalhar no país e ganhar oito mil euros por mês, e mais uma série de disparates. E no fim deram-me uma refeição."
Aí informaram-na de que iam levá-la para um "albergue". "A inspetora grossa disse "e agora que você vai fazer? Vendeu sua casa, deixou seu emprego, que vai fazer quando voltar para lá?". Eu lhe respondi que estava enganada e que nunca tinha sido tão humilhada na vida. Depois fui para o tal de CIT onde te tratam como uma prisioneira, te maltratam dia e noite. Me tiraram tudo - foram sete dias só com a roupa do corpo, não podia trocar de calcinha, lavava só - e disseram que tinha direito a uma só ligação. Quando descobriram que as outras pessoas que estavam presas me davam moedas para eu falar com o meu marido para arranjar um advogado, foram dizer lá que ninguém me podia dar moedas."
Nunca viu agressões mas a dada altura ouviu uma empregada de limpeza aludir a isso. "Havia um homem que queria cigarros - ali não vendem, as pessoas ficam desesperadas - e estava a gritar. E a moça que limpava disse "se levar umas porradas ele se aquieta". Não valorizei porque não sabia que era possível. Agora com esse caso do homem que morreu [refere-se a Ihor] sei o que ela queria dizer."
Não tem dúvidas de que "os procedimentos que estavam tomando não são legais". Perguntada por que acha que agem assim, reflete: "Acredito que é preconceito mesmo, que na cabeça deles os brasileiros só vêm para trabalhar."
Silvânia concluiu o mesmo. "Como sou brasileira as pessoas acham que estou roubando ou traficando ou me prostituindo. É tão horrível isso que quando cheguei a casa fiquei dois dias de cama. Tinha vergonha do que acontecera, não sabia como explicar. Achei que ninguém ia acreditar que não fiz nada. Não tive coragem de contar para a minha mãe e minha filha, só falei para o meu marido." Voltar? "Acho que não, morro de medo."
Ao falar no regresso, a voz de Cristilene falha pela primeira vez. "Foi muito triste estar tão perto do meu filho e não conseguir vê-lo. Ele chorou muito quando soube, sabe? Quando me foram levar no avião o policial que me acompanhou, de primeiro nome Ricardo, me pareceu mais humano. E aí contei tudo para ele, disse que nunca mais queria voltar a esse país, que trabalho todo o dia com público e nunca tratei mal ninguém. E ele me disse: 'Não diga isso, tem aqui o seu marido, o seu filho está aqui, vai voltar sim. Infelizmente pegou os meus colegas num dia ruim.'"
Pelos vistos há muitos dias ruins no SEF. Que o diga José Semedo. Nos seus 11 anos de experiência como advogado de defesa de imigrantes no aeroporto não testemunhou agressões físicas, mas confirma ameaças e maus tratos psicológicos por parte de inspetores de uma polícia que, diz, se tem vindo a tornar "mais agressiva e securitária."
Conta ao DN que em novembro, quando um seu cliente, de nacionalidade cabo-verdiana, condenado por tráfico de droga e com ordem de expulsão, se recusou a embarcar, um inspetor do SEF lhe ligou e disse que "era melhor ir lá falar com ele para o convencer a entrar no avião. Caso contrário, ameaçou, "vou chamar mais colegas e temos de andar todos à porrada".
Com o caso de Ihor Homeniuk em escalada na imprensa, José Semedo, que trabalhou durante seis anos no centro jurídico do Alto Comissariado para as Migrações e foi coordenador do Gabinete de Apoio à Integração dos Refugiados, levou "muito a sério" aquelas palavras.
"Posso dizer que tenho assistido, pelo menos desde 2014, a uma postura muito mais agressiva e securitária por parte dos inspetores do SEF no aeroporto" afirma o advogado, que é regularmente chamado ao CIT do Porto e aos Espaços Equiparados a CIT em Lisboa e em Faro.
Quando ouviu a ameaça do inspetor, embora tivesse vontade de lhe responder à letra, pensou no seu cliente e pediu calma, avisando que ia interpor em tribunal uma providência cautelar para impedir a expulsão (a qual no seu entender é ilegal, porque o homem tem uma filha menor portuguesa a seu cargo em Portugal e este facto é considerado uma exceção para as ordens de expulsão de condenados). "Consegui travar o embarque, por agora, mas mandaram o meu cliente para o EECIT de Faro, nitidamente para o afastar da família e do seu advogado."
Outra situação que este causídico recorda como exemplo da "desumanidade" que, pelo que tem testemunhado, "tem crescido no SEF deste aeroporto", foi há cerca de dois anos e envolveu uma cidadã brasileira grávida de alto risco, em final de gestação.
"Chegou com o seu marido português para visitar a família dele em Portugal. Não estavam casados oficialmente e sem nenhuma razão plausível foi-lhe recusada a entrada e separada do marido. Foi enviada para o EECIT e esteve ali 20 dias até que a consegui libertar só com o habeas corpus. Nem a sua maleta de produtos de higiene lhe entregaram. Passou maus bocados, desesperada por apoio, sentiu-se mal e, apesar de ser uma grávida de risco, só a muito custo e com insistentes apelos meus conseguiu ser observada no hospital. Nem os enfermeiros que estavam lá de serviço a ajudavam. Curiosamente, no hospital, a inspetora do SEF que a acompanhava entrou antes dela para o gabinete médico e depois, quando foi vista pelos médicos sentiu uma estranha hostilidade. Sentiu-se humilhada e tratada como uma criminosa. Foi muito maltratada psicologicamente. A certa altura já me pedia para voltar para o Brasil."
Semedo descreve o EECIT como um "centro de detenção, onde as pessoas estão realmente presas". Porque "dizer que é um centro de instalação é apenas uma designação eufemística. Na verdade, apesar de qualquer detenção ter de ser validada por juízes, ali as pessoas estão detidas, e em muitos casos com a conivência de juízes [o hábito no SEF, como o DN já relatou, é que quando a detenção excede 48 horas se envia um mail ou fax para tribunal a requerer a extensão da detenção e os juízes deferem sem sequer verem os detidos ou certificarem-se de que os respetivos direitos, como o de acesso a advogado, foram respeitados; foi o que sucedeu no caso de Ihor]. Já cheguei a aconselhar clientes e regressarem mesmo aos seus países, para evitarem ter de permanecer ali naquelas condições. Quando são inquiridos e decidida a recusa de entrada nem advogado têm e, como foi o caso de Ihor, variadíssimas vezes, nem sequer percebem a língua. A decisão depende só dos inspetores e nunca há uma segunda opinião, é sempre validada superiormente".
A possibilidade de intervenção de advogado desde a primeira fase do processo - a primeira "entrevista" - é aliás uma reivindicação de associações de apoio humanitário e uma recomendação da Provedoria de Justiça e do Mecanismo de Nacional de Prevenção da Tortura (MNPT), que funciona na provedoria.
O MNPT e a provedoria têm de resto vindo há anos a alertar para as violações de direitos humanos verificadas nos EECIT e CIT, e para o risco de tortura.
"Aquilo ali é uma zona explosiva. É tudo deles", corrobora Susana Alexandre, também advogada especializada nos processos de expulsão e recusa de entrada de imigrantes, e colega de escritório de José Semedo.
A jurista diz sentir um "nó no estômago" sempre que é chamada ao EECIT de Lisboa, onde se sente "impotente perante a arrogância e prepotência, em geral, dos inspetores do SEF, que assumem que todos os imigrantes que estão ali são criminosos e que nós, advogados, somos um incómodo. Chamam-nos sorvedouros de dinheiro, que só lhes atrapalhamos o trabalho. E nem vale a pena reclamar porque as nossas queixas caem em saco roto, como aconteceu com várias que fiz".
Conta que, além de ter sido já "destratada e ofendida várias vezes", chegou a ser "assediada por um inspetor, obviamente com perturbações" e cujo nome reconheceu num dos acusados pelo homicídio de Ihor. "Fiquei muito perturbada, mas falei com outro inspetor do SEF, que conheço de outro serviço e muito digno, que me aconselhou a não fazer nada pois ainda podia arranjar mais problemas."
Um dos casos que mais a perturbou foi o do seu cliente Marcelo, um brasileiro de 26 anos que vivia em Portugal desde os 16 com a mãe e dois irmãos menores. Cumpriu pena por crimes de roubo e tinha pena acessória de expulsão. O SEF decidiu executar a ordem na sexta-feira santa, feriado, em abril de 2017. É este o relato, ainda emocionado, que faz: "Nunca mais me esqueci desse dia. Fui chamada logo de manhã pela família, que acabara de saber que Marcelo tinha saído em liberdade condicional e estava a ser levado para o EECIT para embarcar. Tinha comigo uma decisão judicial que suspendia aquele embarque e fui o mais rápido que pude para o aeroporto. Mandei o documento ao SEF e não tive resposta. Telefonei para o EECIT a dizer que era advogada e que queria ver o Marcelo e o inspetor de turno disse que não, recusando identificar-se".
Entretanto, recorda, recebe uma chamada de Marcelo "a pedir ajuda, a chorar, a dizer que tinha levado murros no nariz e socos no corpo todo, que estava ensanguentado e achava que lhe tinham partido o nariz". Soube que o tinham tentado meter no avião e que ele tinha resistido, tendo o piloto mandado todos sair.
Susana sentiu-se "desesperada", tinha falado com a mãe do rapaz e sabia da angústia da família. Dirigiu-se à esquadra da PSP a pedir que a ajudassem, mas disseram que nada podiam fazer. Voltou a ligar para o inspetor de turno, mas este não a atendeu.
Marcelo voltou a ligar e, segundo a advogada, "desta vez mas agitado, a dizer que precisava de ajuda urgente, que os inspetores estavam com raiva, palavras dele, por se ter recusado a embarcar. A família e eu tomamos a decisão de chamar o INEM".
O INEM chega passados cerca de 15 minutos e Susana, nesta altura já com a mãe e a companheira de Marcelo junto a si, vai ter com os tripulantes da ambulância para explicar o sucedido.
"Eles contactam o EECIT e dizem-nos que não estão autorizados a entrar. Voltei a tentar contactar o inspetor de turno que, desta vez, atende, precisamente para dizer que: só entrava ali quem eles (inspetores) chamavam; eles é que decidiam quem precisava de tratamento ou não; e se fosse preciso tratamento, a Cruz Vermelha (que tem uma equipa no aeroporto e que foi chamada por três vezes para assistir Ihor, sem nunca assinalar ou denunciar maus-tratos) é que era chamada. Não me deixaram, pura e simplesmente, entrar. Até me disseram que ele já estava a embarcar. Afinal estavam a espancá-lo."
Susana Alexandre diz que sentiu "uma enorme impotência" e desabou em lágrimas. "Estava ali no meio da rua, a ver a ambulância a ir embora, e não me contive. Desatei a chorar. Depois até foram uns agentes da PSP que vieram ter comigo e me levaram para a esquadra, onde me acalmaram".
Marcelo acabou por ser expulso durante o fim de semana de Páscoa sem que Susana tivesse sido autorizada a ir ao seu encontro - apesar de esse ser um direito dele.
"Senti que era tão grave o que tinha acontecido que logo na segunda-feira fui diretamente à sede do SEF, a fim de contactar com o gabinete jurídico. Informaram-me que não havia contacto presencial, mas se quisesse, para me dirigir ao SEF de Santo António dos Cavaleiros - DRLVT, na Flamenga, uma vez que o processo aí foi instruído. Dirijo-me de imediato para lá. Informam-me que nenhum inspetor está disponível nessa manhã, pois estão em formação. Dou o meu contacto pessoal e aguardo nas proximidades. Não fui contactada. Ainda escrevi um e-mail para o gabinete jurídico mas, entretanto, Marcelo mandou dizer que quer esquecer e não pretende ter nenhum assunto pendente em Portugal".
Susana reconhece que de acordo com a legislação em vigor, o cidadão brasileiro poderia acabar por ser afastado, uma vez que entrara com 16 anos em território nacional. No entanto, assinala, "só por ter sido recluso, não é carga para contentor".