Divinas missões

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Depois dos Bórgia, que de vez quando serviam aos inimigos a venenosa acqua toffana, a moda de matar por envenenamento entrou em desuso.

No entanto, não é segredo que, mais de cinco séculos depois do auge da infame família hispano-italiana, líderes como Saddam Hussein, Mahmoud Ahmadinejad e Hugo Chávez não abdicavam de um provador para lhes experimentar a comida.

E também já não é segredo, desde a semana passada, que Jair Bolsonaro segue em 2020 o caminho do iraquiano, do iraniano e do venezuelano, de acordo com reportagem pelos corredores do Palácio do Alvorada da revista Veja - tem um funcionário, pago pelos contribuintes, para lhe testar almoços e jantares.

Como, além disso, o presidente conta que espalhou armas pela casa em locais estratégicos e não dorme uma noite sem uma delas ao alcance da mão, há quem diagnostique caso de paranoia pura.

Ele rebate.

Paranoia? E então o atentado à faca, ainda em campanha, cometido por Adélio Bispo em Juiz de Fora, Minas Gerais?

Bolsonaro sempre atribuiu o atentado a um complô.

Os últimos desenvolvimentos da teoria conspirativa, relatados pelo próprio na tal reportagem da Veja, são de cariz aritmético: segundo ele, 70% da facada foi obra da esquerda, 20% de um membro do seu próprio staff e 10% de outras forças.

Que, segundo Bolsonaro, a esquerda estaria envolvida não é novidade - mesmo sem dispor de uma única prova, ele já assegurara isso à sua plateia de fiéis uma mão-cheia de vezes.

O que é novo na contabilidade bolsonariana é a queda abrupta da responsabilidade dessa mesma esquerda: dos garbosos 100% da estimativa anterior cai para os tímidos 70% da atual.

Os culpados da descida são então a presença de um membro do staff na equação - o presidente não o verbalizou mas, pela discrição, toda a gente percebeu que se referia a Gustavo Bebianno, o seu ex-melhor amigo demitido do governo logo em fevereiro - e os misteriosos 10% de "outras forças".

Que forças? Como ele não disse, a internet divertiu-se a especular com extraterrestres, KGB, Porta dos Fundos, Greta Thunberg, Leonardo DiCaprio, Brigitte Macron e outros terríveis inimigos dos "cidadãos de bem" que tomaram conta do Brasil.

Mas uma hipótese, plausível e sem brincadeiras, é que essas forças a que o Bolsonaro se refere sejam afinal as forças de segurança nacional, as mesmas que o presidente passou a carreira política inteirinha a elogiar e cujo controle ofereceu ao ministro Sergio Moro.

É que a polícia, pela voz dos investigadores e dos psiquiatras destacados para o caso de Juiz de Fora, garante que Bispo agiu por conta própria e é clinicamente inimputável, deitando por terra qualquer tese de complô.

Não há, portanto, caminho intermédio para os fãs simultâneos do presidente e das forças da ordem: ou os investigadores dizem a verdade - e Bolsonaro está, de facto, paranoico -, ou eles mentem - e já nem na santa polícia um "cidadão de bem" pode confiar.

A eventual paranoia de Bolsonaro, traduzida na teoria 70%-20%-10%, na aquisição de um provador de comida e nas pistolas "gaveta sim, gaveta não" nos móveis do Alvorada, deve-se certamente à importância excessiva que ele atribui a si próprio.

Em entrevista ao jornal argentino La Nación, em junho, o presidente do Brasil dizia que lhe foi confiada "uma missão divina". E sempre que se entusiasma, repete-o.

Não é o primeiro: no consulado de Benito Mussolini, em Itália, peças de teatro referiam-se a Il Duce nestes termos - "Deus olhou para a nossa pátria e para nos libertar dos inimigos estrangeiros e internos enviou-nos Mussolini" - conta-nos o académico alemão Günter Berghaus, no seu Teatro e Fascismo, de 1996.

Documentos oficiais da CIA, de 1964, citam um comício do déspota haitiano François Duvalier, no qual o sanguinário Papa Doc se autoproclama "líder enviado por Deus para salvar o Haiti".

Após 23 anos no poder, Robert Mugabe justificou a sua eternização na presidência do Zimbabwe com "uma tarefa divina".

Aliás, nem só políticos autoritários atribuem os seus atos a Deus: também o inimputável Adélio Bispo disse à polícia ter agido "em missão divina" horas depois da facada de Juiz de Fora.

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