Ditaduras no Conselho de Direitos Humanos. O mundo ficou "um pouco mais absurdo"

China, Cuba, Rússia e Paquistão são alguns dos países a entrar num órgão que defende "altos padrões de direitos humanos". A candidatura da Arábia Saudita foi preterida.
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"Eleger estas ditaduras como juízes da ONU em matéria de direitos humanos é como levar um bando de incendiários para os bombeiros." O aviso é de Hillel Neuer, diretor executivo da ong UN Watch, a propósito da eleição dos novos membros do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, que havia pedido aos restantes membros da ONU a oporem-se a um conjunto de candidaturas devido ao seu historial de direitos humanos.

Neuer referia-se em concreto às candidaturas da China, Rússia, Arábia Saudita, Cuba, Paquistão e Usbequistão para o Conselho, composto por 47 países, e que nesta terça-feira escolheu os candidatos a 15 vagas para um período de três anos.

A UN Watch juntou-se a outros grupos de direitos humanos, Human Rights Foundation e Raoul Wallenberg Centre for Human Rights, e juntos elaboraram um relatório no qual reprovam as candidaturas já mencionadas. Além disso, o documento diz que Bolívia, Costa do Marfim, Nepal, Malawi, México, Senegal e Ucrânia têm credenciais "questionáveis" devido a problemas de direitos humanos e ao historial de votação na ONU. Os únicos candidatos "qualificados" são o Reino Unido e a França.

Apesar do relatório e da campanha nos meios de comunicação e nas redes sociais, os grupos de defesa dos direitos humanos estavam cientes do inevitável.

China e Rússia foram mesmo eleitas esta terça-feira (13) para o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, mas o apoio a Pequim caiu mais de 20 por cento em comparação com a votação de 2016 e a Arábia Saudita fracassou na sua tentativa de ganhar um assento em Genebra.

Os 193 membros da Assembleia Geral da ONU também elegeram Costa do Marfim, Gabão, Malawi, Cuba, Bolívia, Uzbequistão, França e Grã-Bretanha para o Conselho de 47 membros. Senegal, Nepal, Paquistão, Ucrânia e México foram reeleitos para um segundo mandato de três anos. Os membros do Conselho não podem servir mais do que dois mandatos consecutivos.

Os novos membros iniciarão o seu mandato a 1 de janeiro de 2021.

As regras da eleição do Conselho, baseadas na representatividade geográfica, e permeáveis ao peso do mais forte e dos arranjos nos corredores, dariam a entrada de forma automática à Rússia (com a Ucrânia são os únicos candidatos a dois lugares na Europa de Leste) e a Cuba (candidata com o México e Bolívia a três lugares) e quase garantida à China e Arábia Saudita (quatro lugares para cinco candidaturas juntamente com o Paquistão, Usbequistão e Nepal). A Arábia Saudita acabou por não recolher votos suficientes, numa derrota diplomática, no que também foi visto como uma vitória das organizações pela defesa dos direitos humanos.

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Garantida também estava a entrada de Costa do Marfim, Malawi, Gabão e Senegal para igual número de vagas em África. O mesmo no grupo "Europa Ocidental e outros", com Londres e Paris a preencherem os dois lugares para igual número de pretendentes.

Há uma semana, no Twitter, Hillel Neuer previa: "É provável que o mundo como o conhecemos se torne um pouco mais absurdo do que já é."

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"Lamentavelmente, quando a própria ONU acaba por eleger os violadores dos direitos humanos para o Conselho de Direitos Humanos, ela própria se entrega à cultura da impunidade que supostamente deve combater", comentou o ex-ministro da Justiça do Canadá e atual diretor do Raoul Wallenberg Centre for Human Rights, Irwin Cotler.

Com sede nas instalações das Nações Unidas em Genebra, Suíça, o Conselho é responsável pela promoção e proteção dos direitos humanos, o que inclui medidas contra os violadores dos direitos humanos.

O órgão reúne-se pelo menos durante 10 semanas por ano no em sessões regulares, embora possa reunir-se de emergência, o que já aconteceu 28 vezes desde que foi criado, em 2006. O Conselho veio substituir a desacreditada Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e entre as novidades introduzidas esteve a eleição por votação secreta dos candidatos, quando antes os membros eram escolhidos sem transparência. Mas o processo de votação e a elegibilidade estão longe de funcionarem.

"Precisamos que os Estados tenham uma escolha", disse Louis Charbonneau, diretor da Human Rights Watch para a ONU. "Eles não querem competição. Essencialmente estes são acordos de bastidores negociados entre os grupos regionais".

"Quando os estados não têm escolha, os piores candidatos encontram facilmente o seu caminho para o conselho", disse Charbonneau na semana passada. "Esta é uma infeliz realidade política, mas continuamos a insistir na mensagem de que precisamos de competição e de uma verdadeira eleição, não de uma falsa eleição", concluiu.

Além disso, os Estados Unidos anunciaram a sua retirada do conselho em 2018, tendo alegado que o órgão é um fórum de hipocrisia sobre direitos humanos, bem como de ter um "crónico preconceito contra Israel".

O relatório assinado pela UN Watch, Human Rights Foundation e Raoul Wallenberg Centre for Human Rights lembra a contradição insanável de o Conselho ter países que não respeitam os direitos humanos do seu próprio povo e que, em 2017, os Países Baixos apresentaram uma moção, em nome de 47 países, para que os critérios de elegibilidade e de eleições competitivas fossem revistos, mas nada aconteceu.

Vejamos algumas alegações das candidaturas dos países reprovados no relatório e os factos que os desmentem.

"A sentença de morte é decretada apenas para os crimes mais graves e sob condições estritas."

A Arábia Saudita condenou à morte 184 pessoas em 2019, um número recorde na monarquia de facto governada por Mohamed Bin Salman. Entre esses crimes mais graves, informa o Departamento de Estado dos EUA, Riade executa a sentença de morte por ofensas de apostasia, feitiçaria e adultério.

"As leis do Reino garantem a liberdade de opinião e expressão, sobre a qual não há restrições, salvo as estipuladas por lei e a necessidade de respeitar os direitos e reputação dos outros, proteger a segurança nacional e salvaguardar a ordem pública, a saúde pública e decência pública..."

Resposta do relatório: "Dissidentes que ousam levantar a voz e defender a democracia ou os direitos humanos são atirados para a prisão e torturados. O ativista dos direitos humanos e bloguista Raif Badawi, que defendeu uma sociedade mais livre, foi preso em 2014 por 'insultar o islão através de canais eletrónicos' e julgado por várias acusações, incluindo apostasia. Está a definhar atrás das grades há mais de sete anos."

A Arábia Saudita está "preocupada com a promoção e protecção dos direitos das mulheres e com o empoderamento das mulheres".

O regime levou a cabo "detenções em massa de ativistas dos direitos das mulheres, algumas das quais terão sido agredidas sexualmente e sofreram tortura, incluindo chicotadas e choques eléctricos". As mulheres já podem conduzir automóveis, mas o "regime prendeu a ativista dos direitos da mulher Loujain al-Hathloul por ter apelado ao governo para levantar a proibição de as mulheres conduzirem e acabar com as leis de tutela masculina".

"O governo chinês (...) tem protegido os direitos do povo de votar, de ser informado, de participar, de expressar-se...".

Respondem as ong: "Os cidadãos da China não escolhem a sua liderança em eleições livres e justas. Pelo contrário, a liderança do Partido Comunista determina quem é o presidente. A China também viola o direito à liberdade de expressão. De acordo com o Comité para a Proteção dos Jornalistas, a China está entre os dez países com mais censura e tem sido um dos principais carcereiros de jornalistas. A China também prende cada vez mais ativistas dos direitos humanos e até mesmo vulgares utilizadores do WeChat", a aplicação de mensagens semelhante ao WhatsApp.

"A China dará prioridade ao desenvolvimento das minorias étnicas e áreas de minorias étnicas, respeitando e protegendo os direitos das minorias étnicas."

Seria uma mudança na política de Pequim: "O Departamento de Estado dos EUA informa que as autoridades chinesas detiveram arbitrariamente mais de um milhão de uigures, cazaques étnicos, quirguizes e outros muçulmanos em campos de internamento concebidos para apagar as identidades religiosas e étnicas." E prossegue: "Igualmente no Tibete, a China utiliza leis do código penal para justificar a perseguição étnica e religiosa", dando como exemplo a prisão do defensor da língua tibetana, Tashi Wangchuk, por "incitar ao separatismo".

Moscovo comprometeu-se, na candidatura, a combater as "tentativas de utilizar a defesa dos direitos humanos como um instrumento de pressão política e de interferência nos assuntos internos dos Estados, inclusive com vista à sua desestabilização e à substituição dos governos legítimos".

Rebatem os defensores dos direitos humanos: "A Rússia interfere sistematicamente nos assuntos internos de outros países, empreendendo campanhas globais de desinformação contra as democracias ocidentais, incluindo uma agora lançada durante a pandemia do coronavirus. A Rússia divulga notícias falsas e informações contraditórias, em seis línguas, enquanto coordena milhares de contas de redes sociais para divulgar falsas teorias da conspiração. A Rússia procura minar a própria capacidade de distinguir entre verdade e ficção, como um ataque ao sistema democrático."

A Rússia procura "assegurar a proteção dos direitos humanos e das liberdades com base nas regras do direito internacional e no estrito cumprimento pelos Estados das suas obrigações internacionais em matéria de direitos humanos".

Respondem as organizações não governamentais: "A Rússia espezinha o direito internacional ao invadir a Ucrânia, ao engolir a Crimeia, e ao bombardear civis, hospitais e escolas na Síria numa base sistemática (...). Um relatório da Comissão de Inquérito da ONU sobre a Síria acusou explicitamente a Rússia de envolvimento direto em crimes de guerra pelo bombardeamento 'indiscriminado' de áreas civis que mataram 43 pessoas e feriram 109."

Afirma Havana: "Como parte da sua política de cooperação com os organismos dos tratados de direitos humanos, Cuba cumpre sistematicamente os pedidos de informação dos titulares de mandatos de procedimentos especiais do Conselho dos Direitos Humanos."

Segundo a base de dados de procedimentos especiais da ONU, lê-se no relatório, "Cuba proibiu a entrada aos peritos do Conselho de Direitos Humanos em matéria de tortura, liberdade de reunião, liberdade de expressão e detenção arbitrária, rejeitando os seus pedidos de visita à ilha e de apresentação de relatórios sobre a situação dos direitos humanos".

"Cuba procura (...) evitar que o trabalho do Conselho seja manchado pela manipulação política que desacreditava e punha em causa a Comissão dos Direitos do Homem."

Para as ong, Cuba "é mais responsável do que qualquer outro país do mundo pela manipulação do Conselho de Direitos Humanos, patrocinando resoluções que procuram corroer o significado de direitos humanos individuais e para reforçar as ditaduras". Além disso, recordam, Havana "opõe-se sistematicamente às resoluções da ONU que denunciam as violações dos direitos humanos
no Irão, Coreia do Norte e Síria. Cuba apoiou os violadores dos direitos humanos através de
uma resolução que nega o direito de sancionar tais regimes".

"Os direitos da criança continuam a ser uma das principais áreas de atenção do Paquistão."

O relatório contrapõe: "As crianças paquistanesas estão sujeitas a múltiplas formas de violência e abuso, incluindo práticas de exploração laboral, abuso sexual e casamento infantil." Segundo a UNICEF, o Paquistão tem o sexto maior número de noivas infantis do mundo. A Human Rights Watch relata que "uma média diária de 11 casos de abuso sexual infantil são relatados em todo o Paquistão", incluindo de raparigas com apenas 5 anos. Além disso, alertam, "o trabalho infantil continua a ser um problema grave, incluindo a venda de crianças para serventia doméstica e o rapto de crianças para venda a grupos militantes, mendicidade organizada ou tráfico sexual de crianças".

"O Paquistão continuará a proteger os direitos das minorias e a promover mais harmonia interconfessional."

"As minorias religiosas no Paquistão sofrem de discriminação, violência sectária e
conversões forçadas", responde o documento assinado pelas três organizações. "As leis da blasfémia são exploradas para atacar e perseguir membros de minorias religiosas, particularmente os cristãos. Asia Bibi, uma cristã mãe de cinco filhos passou oito anos no corredor da morte no Paquistão depois de ter sido acusada de blasfémia na sequência de uma discussão com mulheres muçulmanas por causa de um copo de água. Dois políticos paquistaneses foram mortos por apoiarem-na. Em abril de 2017, o estudante paquistanês Mashal Khan foi brutalmente linchado depois de ter sido acusado de publicar conteúdos considerados blasfemos nas redes sociais."

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