Discutimos José Sócrates ou o Correio da Manhã?

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A justiça portuguesa conseguiu cometer a proeza de violar o mais elementar bom senso e, certamente, o espírito das leis que devia aplicar corretamente, tanto a atacar como a defender José Sócrates.

Facto 1: a justiça prolongou por um período demasiado longo o tempo de prisão preventiva, quer do antigo primeiro-ministro quer de outros arguidos do processo. A medida, talvez aceitável nos primeiros três meses após a detenção, acabou, perversamente, por ser transformada numa pena efetiva antecipada ao julgamento e serviu para o Ministério Público investigar aquilo que já deveria, muito antes, estar investigado. Não é para esses fins que a prisão preventiva existe.

Facto 2: As sistemáticas violações do segredo de justiça que se seguiram à prisão preventiva só podiam ter origem na investigação, nas pessoas que em nome do Estado tinham a obrigação de ser guardiães desse segredo. A divulgação manipulada de informações sobre a operação Marquês serviu para condicionar a opinião pública e o próprio sistema judicial: qual será o juiz que, depois de todos os títulos de jornais que lemos, terá coragem de inocentar Sócrates caso a acusação, já tardia, revele afinal grandes fragilidades e graves falhas probatórias?...

Facto 3: A proibição às publicações do Grupo Cofina, por providência cautelar, de noticiar elementos processuais da operação Marquês serviu de tampão aos abusos que o Correio da Manhã, alegadamente, diariamente cometia sobre Sócrates mas é também, simultaneamente, uma violação grosseira da liberdade de expressão e de imprensa que, aposto singelo contra dobrado, será condenada no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.

O resultado é este: José Sócrates pode ser um bandido, um mau carácter, um corrupto mas tem todas as razões para se queixar de não ter sido tratado com lealdade pelo Estado. O Correio da Manhã pode ser sensacionalista, mentiroso, demagogo mas tem todas as razões para se queixar de o Estado estar a limitar, abusivamente, o seu direito a noticiar a corrupção.

Os moralistas de serviço discutem hoje a entrevista de ontem na TVI, os factos da operação Marquês, o carácter de José Sócrates, as bizarrias do Correio da Manhã. Esse debate é interessante e tem componentes relevantes, mas, infelizmente, é hoje um debate menor.

A montante está o debate maior, que ninguém faz: o da autoridade moral da justiça, a qualidade primordial para que a comunidade aceite a força repressiva do Estado no combate ao crime. Essa autoridade moral está a ser, todos os dias, há muitos e muitos anos, paulatinamente desbaratada pela própria justiça. Isto é o mais grave de tudo.

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