Discurso da Rainha. Crime, saúde, imigração e, claro, o Brexit no dia 31

O governo apresentou os planos legislativos do pós-Brexit no Discurso da Rainha. Jeremy Corbyn diz que a iniciativa do governo minoritário é "absurda". Boris Johnson chama Corbyn de Jano, o deus das duas faces.
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Em poucos minutos a monarca elencou uma "enorme lista de compras" do governo, um programa de governo que poucos acreditam ser possível levar avante. A rainha começou por dizer que a prioridade do governo "sempre foi assegurar a saída do Reino Unido da União Europeia em 31 de outubro". E que o executivo quer um novo acordo com a UE baseado no comércio livre e "em cooperação amigável", ao mesmo tempo que uma lei sobre imigração irá acabar com a liberdade de movimento.

Também relacionada com o Brexit terá de ser aprovada legislação sobre agricultura, pescas, serviços financeiros -- e no topo de tudo, o acordo de saída do clube europeu.

Ladeada pelo príncipe Carlos, Isabel II resumiu o programa do governo conservador, 26 projetos de lei centrados na saída do Reino Unido da UE (cerca de um terço) no endurecimento das penas de prisão e na luta contra o crime, no investimento do sistema nacional de saúde e nas infraestruturas e na educação; e dar um quadro legal à defesa do ambiente, com a instituição de um regulador.

Dos 26 projetos de lei sete são relacionados com o sistema judicial e com o combate ao crime. Serão apresentadas novas leis penais para que os criminosos tenham penas mais longas e que o sistema de liberdade condicional não permita, por exemplo, a um assassino sair mais cedo da reclusão se não colaborar com as autoridades no que respeita às vítimas.

Outras medidas anunciadas pela rainha incluem o aumento do salário mínimo para 10,5 libras por hora (11,95 euros), a reforma da assistência social aos adultos, uma nova entidade reguladora com poderes para sancionar de forma criminal falhas na segurança de edifícios, ou mudar a política comercial do sistema de caminhos de ferro.

Mais tarde, o governo disponibilizou online o discurso da rainha e um sumário de todas as medidas. Num texto introdutório, Boris Johnson disse que sair da UE "é uma oportunidade decisiva" para se definir "um novo rumo e uma nova direção" para o país. "Vamos pôr as engrenagens da caixa de velocidades nacional a funcionar outra vez (...) Vamos fazer as coisas que não nos têm sido permitidas durante décadas, arrancarmos a burocracia, estabelecermos as nossas próprias regras e libertarmos o talento, a criatividade, a inovação e a audácia que existe em todos os cantos do nosso Reino Unido."

A grande novidade deste programa, a defesa do Ambiente, é realçada pelo primeiro-ministro. "A grande estrela da nossa legislação é um novo e importante projeto de lei ambiental - uma estrela que nos permitirá orientar o nosso país para um futuro mais limpo e mais verde. Esta legislação faz avançar o trabalho do meu antecessor e estabelecerá um quadro de metas juridicamente vinculativas para reduzir os plásticos, restaurar a biodiversidade e limpar a nossa água e ar. E demonstrando que os britânicos são realmente uma nação de amigos dos animais, tomaremos medidas para reforçar o bem-estar dos animais."

No entanto, anota a deputada dos Verdes Caroline Lucas, "não há uma única menção ao clima" nem "nada de concreto em 130 páginas para corrigir o facto de que o governo está fora do caminho certo para cumprir até as fracas metas de carbono atuais".

Numa camisa-de-forças

Foi a sexagésima quinta vez que a rainha se deslocou à Câmara dos Lordes para apresentar o Discurso da Rainha, que marca a abertura da sessão parlamentar. No entanto, este discurso é dominado pelo calendário: faltam 17 dias para a saída da UE e o governo, apoiado por uma minoria na Câmara dos Comuns, encontra-se numa camisa-de-forças. Os críticos de Boris Johnson dizem que o discurso não é mais do que "um manifesto eleitoral", como disse a nacionalista escocesa Joanna Cherry.

Já o líder da oposição, o trabalhista Jeremy Corbyn, disse que haver "um discurso da rainha e uma abertura do Parlamento é absurdo". "O que temos é uma emissão político-partidária a partir dos degraus do trono."

O Partido Liberal Democrata, o que tem mantido um discurso mais coerente sobre o tema, também não poupou a estratégia do governante. "Este Discurso da Rainha é uma farsa", disse a líder do partido, Jo Swinson. "Boris Johnson está a tentar obter um acordo do Brexit que será extremamente prejudicial para a nossa economia, o nosso SNS e a nossa segurança. Não há nada neste discurso que traga conforto para o trabalhador da fábrica que vai perder seu emprego, ou para as famílias que lutam para pôr comida na mesa por causa da sua política do Brexit." Concluiu ao afirmar que os liberais democratas "querem acabar com o Brexit" e "manter o melhor acordo", ou seja, permanecer como membros da União Europeia.

"A tóxica agenda conservadora de Boris Johnson seria devastadora para a Escócia -- arrancando-nos da UE, do mercado único e da união aduaneira contra a nossa vontade, destruindo postos de trabalho e causando danos duradouros nos padrões de vida, nos serviços públicos e na economia", comentou o líder parlamentar dos nacionalistas escoceses, Ian Blackford. "O tempo do líder conservador chegou ao fim. O SNP fará tudo o que estiver ao seu alcance nos próximos dias para pôr fim a este fracassado governo conservador -- e impedi-lo-á de impor as suas políticas gastas e prejudiciais, nomeadamente opondo-se ao discurso da rainha, se alguma vez chegar a ser votado", concluiu.

Para lá da "muito longa lista de compras" que foi o discurso, que "não vale de nada", a editora de política da BBC Laura Kuenssberg realça que a mensagem provém de "um universo paralelo" no qual Boris Johnson consegue resolver todos os desafios.

Já o homólogo da ITV, Robert Peston, resumiu o debate da seguinte forma: "Este é o debate do Discurso da Rainha mais louco e sem sentido a que alguém vivo assistiu (...) Tem todo o peso e significado de um debate universitário numa tarde chuvosa de outono."

Ouro dos tolos, responde Corbyn

À tarde, já na Câmara dos Comuns, a sessão abriu como é tradição no início da sessão parlamentar: uma declaração do líder da Câmara, John Bercow, sobre o código de conduta do líder da oposição, seguido de dois deputados que agradecem o discurso (um veterano e um novato).

Depois cabe ao líder da oposição reagir ao discurso. Como era de esperar, Jeremy Corbyn demoliu as propostas do governo, mas antes afirmou sobre a iniciativa: "Nunca houve farsa como esta, de um governo com uma minoria de 45 deputados e um recorde de 100% de derrotas na Câmara dos Comuns, estabelecer uma agenda legislativa que sabem não poder ser cumprida neste Parlamento. Portanto, podemos estar a apenas algumas semanas do primeiro Discurso da Rainha de um governo trabalhista. E nesse discurso, o Partido Trabalhista apresentará o programa mais radical e centrado nas pessoas dos tempos modernos, uma oportunidade única numa geração para reconstruir e transformar o nosso país."

Corbyn começou por atacar as medidas relacionadas com a economia britânica. "Não há nada neste Discurso da Rainha que responda à estagnação da economia. Nada que responda aos baixos salários e à insegurança no trabalho. Nada que inverta os níveis crescentes de pobreza infantil ou de pobreza na terceira idade (...) Este discurso deveria marcar o fim da austeridade e apresentar uma nova visão. Em vez disso, mal começa a desfazer os cortes devastadores nos serviços públicos."

O trabalhista recordou que duas propostas de legislação -- reforma da saúde mental e reforma da assistência social -- foram apresentadas no último discurso, durante o governo de Theresa May. "A mesma promeesa após dois anos de inação e de falhanço, com 87 pessoas a morrer em cada dia à espera de assistência social."

Também na educação, diz Corbyn, o discurso é "chocantemente fraco", sem estabelecer compromissos, quer seja para o pré-escolar, quer seja para as escolas secundárias, quer ainda para as universidades. "O dinheiro anunciado para as escolas não recupera o financiamento perdido desde 2010", lamenta.

O mesmo se aplica no que respeita às forças de segurança: o governo anuncia a entrada de 20 mil agentes para a polícia, mas foram cortados 28 mil postos nas forças de segurança.

Corbyn rejeitou a ideia do governo tornar obrigatório a apresentação de um documento de identificação no ato de votar. Mas como no Reino Unido não é obrigatório ter um "há riscos enormes nessa legislação, a qual irá afetar de forma desproporcional as classes trabalhadores, as minorias étnicas e os jovens". Há 11 milhões de adultos sem carta de condução nem passaporte.

O líder trabalhista rejeitou a ideia de que o governo conservador possa estar na linha da frente da resolução dos temas internacionais mais complexos e "no entanto não têm qualquer papel em parar os horrores que se desenrolam nas áreas curdas no norte da Síria, nem em acabar a guerra e a crise humana no Iémen, ou defender os direitos dos rohingia, dos uigures, do povo da Palestina, de Caxemira, do Equador ou de Hong Kong".

Por fim, antes de terminar a intervenção, na qual rotulou o Discurso da Rainha de "ouro dos tolos", deixou ainda críticas ao governo pela falta de medidas ao combate às alterações climáticas.

Jano, Lenine e o vampiro

Na resposta a Jeremy Corbyn, Boris Johnson acusou o trabalhista de mudar de ideias sobre o Brexit e sobre o cenário de eleições antecipadas. "Primeiro era favorável ao Brexit. Agora quer um segundo referendo. Há muito que queria eleições, agora prefere que não haja." E depois comparou-o a Jano, o deus das duas faces. De seguida aproveitou para atacar o ministro sombra das Finanças, John McDonell, membro da ala marxista do partido. "Podemos ver as expulsões da era soviética que estão a ter lugar no seu círculo. Um por um, os seus tenentes são expurgados como Lenine expulsou os companheiros do pobre e velho Trotsky", disse quando quereria referir-se a Estaline.

Mais tarde, comparou o mesmo McDonell a um vampiro. "Vejo que o chanceler sombra [John McDonell], ao ouvir a ideia de o mercado livre ser um sucesso recua como um transilvano com a luz."

Sobre o Brexit poder voltar às urnas em novo referendo, Boris Johnson reconheceu que a campanha do primeiro não foi um exercício democrático de que se orgullhe ao afirmar que "se há alguma coisa que pode ser mais divisivo e tóxico do que o primeiro referendo seria um segundo".

Pouco depois aproveitou uma pergunta do porta-voz dos liberais democratas sobre o Brexit, Tom Brake, para acusar a líder do partido, Jo Swinson, de ir a Bruxelas reunir-se com o negociador chefe da UE, Michel Barnier, para que este não chegue a acordo.

Ainda antes do discurso da rainha, os media britânicos já avançavam que este iria conter 22 novas propostas de lei, no que o governo apelidava de um "programa ambicioso para um Reino Unido pós-Brexit". Crime, imigração, saúde e ambiente eram apresentados como os temas centrais, com o Labour a falar de uma "acrobacia" política e uma perda de tempo, visto não haver ainda acordo para a saída do país da União Europeia e o governo estar em minoria na Câmara dos Comuns.

Boris Johnson insiste que a saída vai acontecer em 31 de outubro, a data prevista, apesar de as negociações do fim de semana com Bruxelas terem sido infrutíferas, com o anúncio da apresentação do orçamento a 6 de novembro.

"Conseguir o Brexit a 31 de outubro é absolutamente crucial", disse Johnson antes da cerimónia. "Mas as pessoas deste país não querem só resolver o Brexit... este Discurso da Rainha otimista e ambicioso põe-nos no caminho para garantir tudo isso e mais", indicou.

O debate decorre até ao final da semana e um voto na Câmara dos Comuns deve acontecer na próxima semana. Mesmo que o discurso seja derrotado pelos deputados Johnson não é obrigado a demitir-se, embora da última vez que tal aconteceu, em 1924, o primeiro-ministro abandonou o cargo. E um porta-voz de Downing Street confirmou que Johnson não irá demitir-se se o discurso for rejeitado.

No entanto, ao The Guardian David Howarth, professor de Direito de Cambridge e ex-deputado liberal democrata, explica que, na prática, o governo poderá ficar atado porque o regulamento, no ponto 51, estatui que se o Discurso da Rainha não for aprovado o governo não pode fazer alterações à política fiscal. Pior, sujeita-se a que os deputados aprovem legislação a proibir a discussão do Orçamento do Estado enquanto o discurso não for aprovado.

Na realidade, os deputados -- e o Reino Unido -- esperam novidades do Conselho Europeu que decorre na quinta e na sexta-feira. Será com base no que Johnson trouxer de Bruxelas que o destino do seu governo será traçado. E é por isso que no sábado a Câmara dos Comuns vai estar em funcionamento.

Caso Boris Johnson queira convocar eleições antecipadas precisa de uma maioria de dois terços dos deputados a aprovar a medida. Já por duas vezes não conseguiu fazê-lo.

Perante tantos cenários e cada vez menos tempo, a Câmara dos Comuns fez um gráfico com o ponto da situação.

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