No livro Ditos e Escritos, de Manoel de Oliveira, encontra-se um texto onde ele diz que realizou Douro, Faina Fluvial "com aquelas certezas que a juventude nos dá". Em que medida essa juventude confiante, e os filmes que ele já tinha visto, com 22 anos, se refletem nesta primeira obra que comemora nove décadas? .O Manoel de Oliveira viu o Berlim: A Sinfonia de Uma Capital [1927], de Walter Ruttmann, e ficou muito impressionado porque, no fundo, era um filme onde havia uma manifestação, uma procura daquilo que poderia ser, à época, específico da arte cinematográfica. Há todo um modo atlético de filmar a cidade... Vale a pena lembrar que nessa altura Oliveira era alguém que se sentia fortemente atraído pela velocidade, pelo desporto, etc., e portanto decidiu fazer um filme inspirado no Berlim de Ruttmann. Trata-se de um filme experimental, que explora possibilidades de registar o movimento através de uma câmara - o que é uma evidência, já que o cinema lida com o movimento -, e a opção de filmar na zona da Ribeira tem também que ver com o facto de ser então uma zona muito movimentada, da faina, carga e descarga no cais da Ribeira, à circulação dos barcos e das pessoas, para além de ser uma das zonas mais características da cidade. A própria água é movimento naquele espaço, não é uma superfície estática. E mesmo a estrutura da ponte, um elemento icónico da arquitetura de ferro e símbolo da modernidade, a conviver, ao lado, com o fantasma ou os resquícios da antiga ponte das barcas - onde tinha havido um acidente provocado pela invasão das tropas napoleónicas - é algo que terá interessado a Manoel de Oliveira. Desde logo porque no seu cinema houve sempre uma vontade de filmar o visível e o invisível. Aliás, em O Pintor e a Cidade [1956] há novamente a evocação dessa ponte, quase como se o cinema tivesse essa capacidade de revelar camadas invisíveis da realidade. Mas há uma outra questão fulcral no Douro, Faina Fluvial: o confronto entre o homem e a máquina, ou entre um mundo tradicional e um mundo industrializado. O cinema é, ele próprio, uma máquina, e o Oliveira é oriundo de uma família industrial. Ou seja, enquanto alguém que começou a interessar-se pelas artes, relacionando-se por exemplo com Adolfo Casais Monteiro ou José Régio, é natural que se tenha interessado por uma "modalidade" que recorre à máquina enquanto mediação do olhar: a câmara de filmar é só mais uma máquina, tal como o automóvel..O Pintor e a Cidade, que referiu, integra também o programa do cine-concerto de efeméride do Douro, Faina Fluvial. E aqui o confronto é entre o pincel e a câmara... .O Pintor e a Cidade é o primeiro filme a cores de Manoel de Oliveira e permitiu-lhe não só acompanhar o trabalho do aguarelista António Cruz, através das suas aguarelas paisagísticas, mas também tomar o pulso da capacidade que o cinema tem, por comparação com a pintura, de registar a vida moderna. Não é por acaso que na ficha técnica são identificadas duas personagens: o pintor António Cruz e o Porto. Mas é de facto um filme sobre esse confronto. E depois é ainda o filme de um recomeço: entre ele e o Douro, Faina Fluvial só fez o Aniki Bobó [1942], mal recebido à época, e ao fim de 14 anos, O Pintor e a Cidade. Uma coisa curiosa é que o Oliveira diz que fez este filme contra o Douro, Faina Fluvial, contra a sua montagem e ritmo acelerado, que aqui se converte numa permanência das imagens..É um filme que já põe em causa as tais "certezas da juventude" da obra inaugural? .Sim, é um filme que questiona as convicções que marcaram o Douro, Faina Fluvial, esse voltado para a pureza e especificidade do cinema enquanto arte autónoma. Já O Pintor e a Cidade inaugura uma relação do cinema com outras formas de expressão artística. É o início de uma segunda modernidade no âmbito da obra do Oliveira, que mais tarde viria a afirmar, de maneira iconoclástica e polémica, o cinema como uma síntese de todas as artes, sem especificidade nenhuma... No fundo, Manoel de Oliveira foi alguém extremamente inconformista..Isso leva-me a uma frase sua, no prefácio de Ditos e Escritos, sobre "alguém que desenvolveu uma obra à margem, senão mesmo contra todos os cânones." Como é que se afere essa negação do cânone em Oliveira? .Desde logo, no período até à Revolução, ele não correspondia de modo algum àquilo que era o cânone ditado pelas expectativas do Estado Novo em relação ao cinema, à sua instrumentalização política, e por isso é que nessa altura filmou pouco. É significativo que o único filme desta fase financiado pelo SNI [Secretariado Nacional de Informação] tenha sido o Acto da Primavera [1963], por ser um filme que alegadamente retrataria a Paixão de Cristo, fazendo-o através do registo de uma representação popular do Auto da Paixão pelos habitantes da Curalha, uma aldeia do Concelho de Chaves. E se de facto Oliveira faz tanto um documentário da aldeia como uma recriação dessa representação popular, a verdade é que acabou por ser preso, basicamente porque usou a Paixão de Cristo para representar um conflito, que se estende à guerra em abstrato, a todas as guerras, mas remetendo, de forma particular, para a Guerra Colonial que acabava de deflagrar... Também aqui estava contracorrente e o Estado Novo percebeu isso. Esta dimensão contracorrente faz com que a geração do Novo Cinema português o reclame como uma figura tutelar, e o Oliveira reemerge das cinzas como exemplo de inconformismo. E é interessante pensar a própria relação dele com esta geração, que punha em prática os pressupostos da nouvelle vague, com uma atenção à rua, ao quotidiano, ao urbano: nesse momento, Manoel de Oliveira vai progressivamente encerrar-se nos estúdios da Tobis para filmar dramas tão despropositados face ao contexto como o Benilde ou a Virgem Mãe [1975], seguido do Amor de Perdição [1979] e, como se não bastasse, o Francisca [1981]. Portanto há aqui, mais uma vez, uma clivagem fundamental, o cinema estava na rua e Oliveira meteu-se dentro dos estúdios. Mas a revolução não deixa de passar pelo antagonismo retratado nas narrativas destes filmes. Quer dizer, há sempre uma postura que não segue aquilo que num determinado momento se apresenta como expectável ou politicamente comprometido, mas que subverte a ordem das coisas..Este livro é o primeiro volume de uma coleção que será dedicada a uma certa literatura de Manoel de Oliveira... .A coleção chama-se Casa do Cinema e vai conter não só os seus escritos sobre cinema, mas também outros materiais do acervo relacionados com filmes, desde guiões a documentos de trabalho, ensaios sobre Manoel de Oliveira ou sobre questões ligadas à história do cinema que dialoguem com a sua obra. O que este primeiro volume torna evidente é, por um lado, o modo como a sua prática da realização foi sempre acompanhada por uma reflexão acerca do cinema - é indissociável - e, por outro lado, uma série de questões recorrentes ao longo desse percurso, que são permanentemente reformuladas. Estamos a falar de anotações, textos com caráter mais ensaístico e outros mais afetivos sobre filmes, realizadores, atores e críticos com quem ele se foi cruzando..Tem estado a falar de um ponto de vista histórico e teórico rigorosíssimo, mas como é que se relaciona com o cinema de Oliveira? Dirigir esta Casa tem um significado pessoal? .Antes de mais, sou um espectador de longa data do seu cinema. Pelo caminho tive oportunidade de conhecer Manoel de Oliveira, de quem fui próximo numa parte final da sua vida. Na verdade, fiz uma tese de doutoramento em Paris sobre a relação entre Literatura e Cinema na obra de Manoel de Oliveira, que na altura ainda não tinha sido trabalhada com a devida profundidade. Portanto, dirigir a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO) é uma responsabilidade, um grande privilégio e um trabalho inesgotável, porque é uma obra que dificilmente se esgota e é essencial colocá-la em diálogo com os nossos dias, dá-la a conhecer às gerações mais jovens, ou a outras menos jovens que até aqui não puderam ter contacto com ela..Consegue situar o seu primeiro contacto com esta obra? .A memória consciente que tenho de um primeiro contacto foi com o Vale Abraão [1993], e devo dizer que fiquei absolutamente fascinado com o filme. Desde logo porque a relação entre palavras e imagens é algo que sempre me interessou, e o Vale Abraão, para mim, faz a síntese não pacífica dessa relação complexa, resultando num filme de uma beleza avassaladora. Mas a certa altura - e isso deixou-me surpreendido e intrigado durante muito tempo - há, por parte do Oliveira, a opção de manter um plano em que o Luís Miguel Cintra pega num gato e, ao atirá-lo, ele embate na câmara e a câmara treme... Ora este plano contradiz todo um filme aparentemente clássico, preocupado com a perfeição e com a plasticidade das imagens. Muitos anos mais tarde discuti este plano com ele. Resumindo: o próprio texto da Agustina [Bessa-Luís] diz a dada altura que a Ema [interpretada por Leonor Silveira] coxeia, tem uma deformidade, porque a beleza precisa de um sinal nela para salvação dos homens... E o plano do gato arremessado contra a câmara é essa marca de imperfeição que Oliveira introduz no Vale Abraão, não para salvação dos homens mas para salvação do espectador. Para despertar o espectador do fascínio em que terá possivelmente incorrido.."Despertando" agora para o concreto do acervo, como descreve no panorama dos arquivos especializados em cinema em Portugal? .É um acervo riquíssimo, na verdade, será a obra mais vasta do cinema português, tendo em conta que se desenvolveu num período temporal de 80 anos. O próprio Manoel de Oliveira foi reunindo e guardando uma série de documentos que se relacionam com o seu cinema, e que permitem complementar e aprofundar o conhecimento sobre ele... É curioso que há coisas que emergem dos próprios documentos, e de repente se tornam evidentes. Um exemplo: a exposição Manoel de Oliveira Fotógrafo, que em breve irá para a Fundação Calouste Gulbenkian, e que revela uma faceta desconhecida através de fotografias tiradas por Oliveira entre 1930/50. Estamos neste momento a fazer, ou continuar, o tratamento arquivístico de toda a documentação, e é um processo longo que implica também a digitalização integral do acervo, porque uma das missões da CCMO é promover a investigação num sentido abrangente, e em conexão com outros arquivos, como seja o de Paulo Rocha ou da Agustina. Estamos precisamente a trabalhar uma exposição à volta da parceria criativa Agustina/Oliveira..A dinamização deste património, quer através das exposições quer nas sessões ou cine-concertos, é uma forma de expandir a leitura sobre ele, a par da preservação da memória? .Qualquer trabalho de conservação exige a dinamização, caso contrário é um trabalho de congelamento. É vital que esta obra continue a "provocar" coisas. E o facto de a Casa estar implantada num espaço como Serralves é extremamente positivo, porque desencadeia um confronto com a arte contemporânea, e uma inscrição nessa arte. Sobretudo o que temos feito é dar a ver esta obra de maneiras que renovem os pontos de vista sobre ela, inclusive com publicações - a nossa aposta editorial é muito forte desde o início - e pôr essa obra em diálogo com outros criadores, como está patente agora na exposição dedicada a Alexander Kluge..A CCMO, projeto assinado por Siza Vieira, parece-se mesmo com uma casa, a começar pela fachada. Isso recorda-nos o simbolismo da casa no filme póstumo Visita ou Memórias e Confissões [1993]... .O nosso trabalho diário é fazer com que as pessoas que nos visitam se sintam em casa. De resto, para além do Visita ou Memórias e Confissões, as casas são um elemento fundamental em toda a obra de Oliveira, em especial a partir dos anos 1970. E, portanto, é uma feliz coincidência.