Hoje comemoram-se os 74 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Bem a propósito, a reboque do frenesi mediático por causa do campeonato do mundo no Catar, ressoam uníssonas vozes a condenar as alegadas violações que lá se perpetram. Porém, estaríamos num mundo quase perfeito se apenas o Catar fosse desrespeitoso com a maior parte dos Direitos Humanos, decorrente da condição de Estado autoritário e repressor, em desalinho com o desenvolvimento da humanidade..Com a avalanche de denúncias que se verificam, se há alguma crítica veemente acerca do tema, o Catar mostra embaraçoso cartão amarelo, a ponto de chamar o embaixador de um dos Estados acusadores; ou a FIFA faz as vezes da repressão, com cartão vermelho em riste, a proibir manifestações por direitos sociais e políticos incontestáveis. Algumas equipas vão driblando os cerceamentos para não serem punidas, e deixam cair braçadeiras militantes da diversidade LGBTQ+, enquanto se ajoelham ou tapam a boca, antes do apito do árbitro para a bola começar a rolar..Para além disso, o palco das arábias tem servido para as seleções protestarem contra seus próprios governos, como o plantel iraniano que se recusou a cantar o hino nacional, em repúdio ao desrespeito ostensivo pela desigualdade de género no regime dos aiatolas. A seleção portuguesa bem poderia ter seguido o mesmo exemplo, prestando solidariedade com as vítimas de tráfico humano, na exploração laboral de imigrantes, cuja máfia fora desmantelada na véspera da estreia da equipa das quinas, no Estádio 974..E não ficamos por aí. Poderíamos desfiar um rosário de violações em outros Estados, desde a Polónia, onde também caberia como uma luva o protesto das braçadeiras em domínio próprio, ou a Hungria, a copiar o gesto de tapar a boca, para denunciar a falta de liberdade de expressão, eloquente por si na simbologia revelada..Assoma-se a todo esse caudal de violações, às barbas da União Europeia, a invasão da Ucrânia pela Rússia, com cenas que chocam os telespetadores mais sensíveis, no costumeiro dizer dos telejornais. A chegada do inverno vai dando contornos de extrema violência ao conflito, para além dos flagrantes crimes contra a humanidade, escalando para o grave estágio de "estado patrocinador do terrorismo", como definido em resolução aprovada recentemente pelo Parlamento Europeu. A intenção é a de infligir ao povo ucraniano o maior sofrimento possível, deixando assente que, de facto, a violência militar de Estado é o mais absoluto dos crimes. Aproximam-se os dez meses do início das hostilidades, que coincide, justamente com a consoada. Constitui um paradoxo ter-se na mesma data tão dramático cotejo entre civilização e barbárie, seja-se cristão, muçulmano, agnóstico ou ateu..Vale recordar, ainda com o calendário na mão, que o início do século XXI foi marcado pelos Objetivos do Milénio, rebatizados de Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, e que, claramente, já não se conseguirão implementar as suas dezassete metas até 2030. Aliás, em 2030 também se realizará mais um campeonato do mundo. Portugal e Espanha, que apresentaram candidatura conjunta, são fortes concorrentes para sediá-la, associando-se simbolicamente a Ucrânia à dupla ibérica. Aguardemos pelos próximos jogos, na expectativa de que não entre no calendário deste século mais nenhuma data sinistra, como as duas que já marcaram a história: o 11 de setembro, emblemática tragédia da nova era, e o 24 de fevereiro, com o desvario geopolítico e económico a que estamos a assistir, sem se vislumbrar possíveis acordos de paz..Voltando à bola! O atual campeonato do mundo, que de há muito era anunciado, sem grandes contestações, no limite com objeções apenas de natureza climática, transformou-se, inesperadamente, na bandeira dos direitos humanos, ainda que tal bandeira vá sendo hasteada sem o aval do anfitrião do evento, como se tem protestado com clamor global. Fica, por último, a esperança de que, de facto, efemérides possam transformar-se em emblemas de abrangente reivindicação internacional, como fenómenos irrefutáveis do tempo presente. Pese embora o hiato entre a escolha do país sede e o início do certame -- uma década perdida -- é sempre alentador perceber que os relvados e arquibancadas do Catar podem ser divisor de águas na defesa de grandes causas à humanidade.. Professora Associada da Universidade Europeia