"É possível fazer política sem ódio, São Paulo mostrou que o obscurantismo e o negacionismo têm os dias contados", disse Bruno Covas, do PSDB, no discurso de vitória na eleição para a Prefeitura de São Paulo. A seu lado, o governador do estado homónimo, João Doria, também do PSDB, com um sorriso de orelha a orelha debaixo da máscara, a pensar nas presidenciais de daqui a dois anos contra Jair Bolsonaro, o alvo daquelas palavras. Instantes depois do fecho das urnas em 2020, as eleições de 2022 começaram.."Um partido que tem mais de 15 milhões de votos não só merece respeito como se senta na mesa principal", disse o próprio Doria, 48 horas após o triunfo do PSDB no maior colégio eleitoral do país, ao jornal Folha de S. Paulo. O partido que já esteve no Palácio do Planalto pela mão de Fernando Henrique Cardoso, de 1995 a 2002, até perdeu em total de municípios na comparação com a eleição de 2016, mas ainda assim governará mais pessoas, a nível autárquico, do que qualquer outra força política brasileira, o que Doria entendeu como um impulso para lançar a sua campanha a Brasília.."A população votou contra os populismos de direita e de esquerda", continuou Doria, numa indireta que desta vez, além de Bolsonaro, também visava atingir o presidente de 2003 a 2010, Lula da Silva, principal figura da esquerda brasileira e líder espiritual do PT. .O objetivo do governador de São Paulo é conquistar, o quanto antes, o vácuo entre a extrema-direita e a esquerda. Mas não está sozinho nesse propósito - ninguém está sozinho na política de um país com 30 partidos no Parlamento..Só no centro-direita, cujo espaço Doria tenta ocupar, há, pelo menos, mais quatro "presidenciáveis"..Um deles, Rodrigo Maia, o presidente da Câmara dos Deputados, que pertence ao DEM, partido com histórico de aliança com o PSDB, à moda de CDS e PSD em Portugal, também quis surfar na vitória autárquica. Apareceu ao lado do colega de partido Eduardo Paes, que goleou o prefeito Marcelo Crivella (Republicanos) na corrida à Prefeitura do Rio de Janeiro..E Paes, como Covas, mandou indiretas a Bolsonaro, que apoiava Crivella, bispo da IURD e sobrinho de Edir Macedo. "Nós passamos os últimos anos radicalizando o discurso contra a política brasileira (...) o resultado desse radicalismo, ódio, divisão, não fez bem a nenhum carioca, a nenhum brasileiro.".Maia, entretanto, diz-se "sem carisma" para se apresentar na corrida presidencial, mas, na qualidade de chefe de uma das casas do poder legislativo, tem capital político de sobra para lançar outros nomes de "centro"..Em entrevista ao portal UOL, citou Luciano Huck, o apresentador da TV Globo que já em 2018 cogitou concorrer, e Luiz Henrique Mandetta, o popular ex-ministro da Saúde de Bolsonaro que o presidente demitiu, entre outros motivos, por causa dessa mesma popularidade.."Em 2022, eu vou estar na praça pública lutando por algo em que eu acredito", confirmou Mandetta, que se reuniu com Huck "para discutir o país". O apresentador, entretanto, além do ex-ministro da Saúde, vem mantendo conversas - convenientemente tornadas públicas - com outro ex-ministro bolsonarista, o ex-juiz Sérgio Moro..Mas o presidente da Câmara dos Deputados exclui Moro do grupo de presidenciáveis de centro-direita. "Moro? Não posso apoiar uma candidatura de alguém de extrema-direita", afirmou. O ex-juiz, entretanto, ao anunciar nesta semana funções numa empresa norte-americana, ficou mais longe do Planalto..E pela direita há ainda João Amoêdo, do Novo, versão brasileira da Iniciativa Liberal, cujo quinto lugar em 2018 o pode animar a concorrer novamente ou a ser candidato a "vice" de alguém..Rodrigo Maia lembrou, porém, um nome de centro-esquerda, Ciro Gomes, do PDT, terceiro classificado nas eleições de 2018 e de 1998 e quarto nas de 2002.."Com os meus 14%, 15% [em 2018 teve 12,47% dos votos], o que vou fazer, à luz do dia, na frente de todos, é tentar capturar um pedaço de centro-direita para uma ampla aliança no centro-esquerda", explicou Ciro. "Se eu conseguir isso, vou ser o próximo presidente do Brasil, senão boto a viola no saco e vou ser um livre pensador.".Ciro falou embalado pela boa performance do seu partido nas municipais: conquistou, numa aliança informal com o PSB, também de centro-esquerda, quatro das 26 capitais estaduais brasileiras, todas nordestinas, uma região onde o PT, que a costumava dominar, ficou de mãos a abanar.."A burocracia corrompida do PT praticou loucuras e quer agora, sem nenhuma autocrítica, que a nação inteira engula", afirmou ainda Ciro, dando a entender que uma frente ampla de esquerda não passa de utopia - Ciro já se recusara a apoiar o petista Fernando Haddad contra Bolsonaro na segunda volta de 2018..O cientista político Vinícius Vieira diz ao DN que "embora Ciro e Doria estejam muito animados, não necessariamente serão os representantes do centro-esquerda e do centro-direita nas presidenciais, primeiro porque embora a centro-direita tenha sido a vencedora das municipais, nem sempre essas eleições impactam nas nacionais; fazer um prefeito é uma coisa, fazer um presidente da República é outra e exige um longo caminho".."Por outro lado, o centro-esquerda tem força sobretudo em duas cidades, o Recife, com o PSB, e Fortaleza, a sede do Ciro, com o PDT, mas não tem a robustez da centro-direita.".E o PT não estará disposto a abdicar do protagonismo na esquerda - afinal, além de ter governado por 13 anos, através de Lula e Dilma Rousseff, o ex-sindicalista liderava as sondagens em 2018 antes de ser preso, e o substituto, Haddad, mesmo às pressas, somou não desprezíveis 47 milhões de votos.."É verdade que o PT não cresceu nesta eleição, mas não está morto, só tem de dar uma chacoalhada", disse Gleisi Hoffmann, a presidente do partido..Em 2022, dificilmente os referidos Lula, se decisões do Supremo Tribunal Federal o tornarem elegível, ou Haddad vão deixar de concorrer.."O PT não ganhou em capitais mas expandiu poder em cidades médias, aquelas acima de 200 mil eleitores, pelo que será sempre a maior força à esquerda; no entanto, não há incentivo à união porque, havendo duas voltas, na primeira não me surpreenderei se houver quatro grandes candidaturas contra Bolsonaro, duas de centro-direita, talvez com Huck e Doria, mais Ciro na centro-esquerda e uma do PT", analisa Vinícius Vieira..Surge ainda nesse campo a hipótese Flávio Dino, o governador comunista do PCdoB que derrotou o clã Sarney no Maranhão e com isso ganhou notoriedade nacional à esquerda.."Olhando nacionalmente, o PT continua a ser a coluna vertebral do campo progressista", disse Dino, mas deixando no ar uma alternativa a Lula. "Muito se fala na vitória da Argentina, mas a Cristina Kirchner foi candidata a 'vice'. Não quero dizer que o Lula tem que ser candidato a vice, apenas que o potencial eleitoral da Cristina não foi jogado fora.".Acresce que o PSOL, partido comparável ao Bloco de Esquerda, saiu reforçado das municipais: além da vitória do seu candidato numa capital, Belém, o partido ainda liderou a esquerda em São Paulo, onde Guilherme Boulos, só derrotado por Bruno Covas, se revelou uma surpresa, a ponto de unir toda a esquerda à sua volta nos 15 dias entre a primeira e a segunda voltas.."Queria agradecer a Lula, a Ciro Gomes, a Marina Silva, a Flávio Dino pelo apoio, vou trabalhar para que o que a gente uniu aqui em São Paulo sirva de inspiração para o Brasil, para ajudar a derrotar o atraso e o autoritarismo. Vou estar à disposição da luta do povo em São Paulo e no país. Nessas eleições, não construímos apenas uma onda de esperança para o segundo turno, nós construímos muito mais. Nós apontamos para o futuro", disse Boulos, um político que Fernando Henrique Cardoso comparou a um jovem Lula..Se, por um lado, sofre concorrência pesada, por outro, a extrema-direita tem a seu favor a definição do candidato do seu campo, Jair Bolsonaro..O presidente, no entanto, sofre com rejeição no país - a melhoria registada nas sondagens há cerca de três meses graças ao auxílio emergencial prestado aos mais atingidos pela pandemia vem-se esvanecendo - e com a falta de partido. O Aliança pelo Brasil, que criou em redor do seu projeto, não sai do papel, pelo que o regresso a partidos como o PP ou até o PSL, com quem rompeu há um ano, pode ser uma alternativa..Finalmente, as municipais revelaram que o Midas de 2018, a quem bastava citar o nome de um aliado para o fazer ser eleito, perdeu os poderes. Sofreu derrotas estrondosas em São Paulo (com o candidato Celso Russomanno, apenas quarto classificado) e no Rio (Crivella) e em todas as cidades de médio porte onde decidiu tomar partido.