Dinheiro, vaidade, escândalos. Porque Bolsonaro quer sair do próprio partido
Nas últimas 48 horas, Jair Bolsonaro ouviu um deputado federal usar o escândalo de corrupção do seu filho Flávio para o atacar. E uma deputada estadual criticar o seu histórico de mudanças constantes de partido. E um senador mostrar perplexidade com as suas atitudes recentes. E um outro parlamentar acusá-lo de só se mover por dinheiro. Nada de mais na vida de um presidente da República de um país democrático que tenha de lidar com uma oposição aguerrida.
Mas o que diferencia o Brasil de Bolsonaro da generalidade dos outros países democráticos é que o deputado federal que o atacou, a deputada estadual que o criticou, o senador que se assombrou e o outro parlamentar que o acusou são todos do partido do presidente, o Partido Social Liberal (PSL).
Nas tais últimas 48 horas, Bolsonaro criou uma crise de enormes proporções com o próprio partido que deve, muito provavelmente, resultar na sua saída do PSL, ao qual se filiara, com juras de amor eterno, em janeiro de 2018, para iniciar a campanha presidencial vitoriosa nas urnas nove meses depois.
A crise começou num comentário informal do presidente, na última terça-feira, para um apoiante de Pernambuco, à porta do Palácio do Alvorada, onde diariamente tira fotos ao lado dos populares. "Eu, Bolsonaro e Bivar juntos por um novo Recife!", gritou o apoiante, como banda sonora para o seu rápido vídeo de telemóvel ao lado do presidente.
De imediato, Bolsonaro reagiu: "Ó, não divulga isso não, pô. O cara 'tá queimado para caramba lá. Esquece".
O "cara" que, segundo o presidente, está "queimado para caramba" é Luciano Bivar, líder nacional do PSL. Que não gostou do que ouviu e, horas depois, tentou tomar as rédeas do fogo cruzado. "Não estamos num grémio estudantil: depois disso ele [Bolsonaro] não tem mais relação alguma com o partido, está esquecido", disse, enraivecido, à emissora Globonews.
Ao site Antagonista, o presidente contra atacou, dando a entender que sente preocupação com as contas do partido nalguns estados, nomeadamente em Minas Gerais, onde o diretório estadual, liderado pelo atual ministro do turismo, é acusado de desvio de dinheiro público. E isso às vésperas as eleições municipais do ano que vem: "Vamos começar campanha para prefeito sem o partido dizer ao que veio, sem se organizar, sem ter um compliance [departamento que adequa as insitutições às regras de boa gestão]. Nós podemos fazer muitos prefeitos mas alguns da liderança do partido não estão enxergando isso, ficam olhando para o próprio umbigo".
Com a rutura, candidaturas municipais em andamento no PSL, como a da deputada Joice Hasselman à maior cidade do país, São Paulo, ficam em risco - Bolsonaro, na quinta-feira, lançou até o nome do apresentador de programas de crime José Luiz Datena, que não é do partido, em vez do de Joice, o que serviu para adensar o cima de desconfiança interno.
Aliás, o presidente deixou no ar a hipótese de formação de um novo partido: "Vários parlamentares discutiram ontem e hoje uma espécie de refundação do partido, um novo estatuto bem claro". Para cria-lo, segundo a constituição brasileira, bastam a redação de um programa e do tal estatuto com a assinatura de 101 cidadãos eleitores, mais 100 dias de espera no Tribunal Superior Eleitoral e apoio de 0,5% dos votos válidos na última eleição, desde que distribuídos por nove dos 27 estados do país.
Bolsonaro, que já foi do PDC, do PPR, do PPB, do PTB, do PFL, do PP e do PSC, pode agora trocar o PSL por uma nova força fundada de raiz, que se chamaria Conservadores, ou pela nova UDN, o partido que nasceu como oposição ao presidente Getúlio Vargas, nos anos 40 do século passado, e que acabaria por se dissolver na Arena, sustentáculo político da ditadura militar, de 1964 a 1985.
Mas e sair do partido pelo qual foi eleito é assim tão simples? Por lei, o presidente da República não perde o cargo por trocar de partido mas outros mandatários, como vereadores e deputados, sim.
Por isso, o Palácio do Planalto busca soluções jurídicas para desvincular os eleitos pelo PSL que queiram acompanhar Bolsonaro na debandada, uma vez que, como qualquer governo, depende de apoio legislativo - Collor de Mello e Dilma Rousseff foram derrubados por perderem o domínio no Congresso.
Muito dividido, o PSL tem sido acusado, até internamente, de ser "um saco de gatos" no parlamento, sem coesão na luta pela aprovação de projetos do governo e em constante guerra de vaidades - o primeiro e o terceiro filhos do presidente, Flávio e Eduardo, a pré-candidata à prefeitura de São Paulo Joice Hasselmann, a ativista Carla Zambelli, o ex-polícia Major Olímpio, o príncipe Luiz Phillipe d'Orléans e Bragança e o ator pornográfico Alexandre Frota, por exemplo, envolveram-se em brigas públicas nas redes sociais. O próprio Bolsonaro chegou a admitir que na campanha foi "pegando de tudo" para formar listas.
Para já, o PSL tem 53 assentos na Câmara dos Deputados, o que o torna a segunda maior bancada atrás apenas da do Partido dos Trabalhadores, principal força da oposição, e que lhe permite ter forte participação e influência em comissões parlamentares. Tem ainda três, de 27, governadores, e três, de 81, senadores.
Na sequência da crise, Bivar já puniu deputados próximos a Bolsonaro, retirando-os dessas comissões.
A luta interna no PSL é, pois, por poder. Mas também por dinheiro: a distribuição do fundo que financia, com verbas públicas, o funcionamento dos partidos e as suas campanhas eleitorais é indexado ao número de votos obtidos na última eleição - estima-se por isso que o orçamento do partido somados esses fundos possa ser de perto de 70 milhões de euros.
O núcleo mais próximo de Bolsonaro reivindica que Bivar, apesar de ter fundado o partido há 24 anos, abra mão da liderança em prol de alguém da confiança plena do presidente da República - como sucedeu durante a campanha presidencial, quando Gustavo Bebbiano, braço direito de Bolsonaro na época mas entretanto demitido do governo e em colisão com a família presidencial, comandou o PSL.
Argumentam esses auxiliares de Bolsonaro que, antes dele, o PSL tinha um único deputado e, depois dele, passou a contar com os tais 53. Por outro lado, alegam que a principal preocupação de Bivar sempre foi mais o destino dos milionários fundos partidário e eleitoral a que o partido tem acesso do que o apoio ao presidente e ao governo.
"Ou o Bivar entrega o partido para o Bolsonaro ou sairemos do PSL", sentenciou ao site Congresso em Foco Bibo Nunes, deputado da ala bolsonarista. "Não é Bolsonaro que está preso ao partido. É o partido que está preso a Bolsonaro. Trocar de partido não é coisa de outro mundo".
Júnior Bozella, deputado do PSL ligado a Bivar, devolve a crítica: "Não consigo encontrar outro entendimento para Bolsonaro querer deixar o PSL que não seja essa questão que envolve o dinheiro do partido. O PSL defende a 100% o governo nas votações e faz gestos a favor do presidente, financeiros e políticos, através do Bivar, por isso, essa questão de ter o controlo do partido não vai levar a lugar algum. O presidente tem quatro anos pela frente, o PSL tem uma vida".
Para Bozella, a chave do cofre do PSL nos principais centros urbanos até já está nas mãos da família Bolsonaro, uma vez que foram atendidos todos os interesses de Eduardo no diretório de São Paulo e de Flávio no do Rio de Janeiro.
Major Olímpio, senador do PSL que já foi muito próximo de Bolsonaro, diz-se "perplexo" com as declarações do presidente contra Bivar. "Eu não vejo motivos, é mais fácil resolver qualquer desacordo do que sair, pegou-nos a todos de calças curtas".
A deputada estadual Janaína Paschoal, recordista de votação pelo PSL, que redigiu o impeachment de Dilma e chegou a ser dada como vice-presidente de Bolsonaro, acha que "ele anda há muito tempo a trocar de partidos sucessivamente". "Penso que se ele trocar de partido só vai trocar de problema, em pouco tempo ele estará infeliz no próximo partido, não é uma praga, é uma constatação", registou ao Folha de S. Paulo.
Para o Delegado Waldir, nada menos do que o líder parlamentar do PSL, se Bivar está "queimado", como disse o presidente, a família Bolsonaro não está melhor. "Como você fala do quintal alheio se o seu quintal está sujo? As candidaturas [do PSL] em Minas Gerais e Pernambuco estão sendo investigadas? Mas o filho do presidente também está..", afirmou, ouvido pela revista Época.
A imprensa não podia deixar de saber a avaliação da crise que faz Alexandre Frota, deputado expulso em agosto do PSL por ter criticado Bolsonaro, de quem foi íntimo o longo da campanha. "O partido deu-lhe uma oportunidade de se tornar presidente do país, o Bolsonaro estava num momento em que ninguém o queria, ninguém acreditava nele. Isso mostra quanto ele só pensa nele", disse o antigo ator de telenovelas e de filmes pornográficos.
"Fico a pensar naqueles deputados que dão a alma por ele, lutam por ele, acham-no o cara mais honesto e íntegro e o defendem com unhas e dentes, a ouvi-lo falar que o PSL não interessa e que o Bivar está queimado. Se o Bivar está queimado, o Jair Bolsonaro está carbonizado: ele tornou-se uma potência de problemas... trazidos, na maior parte, pela família dele".