Dinastias do desporto. Entre a honra do apelido e a vontade de vencer

Diogo é filho de Cândido Barbosa e quer dar seguimento aos feitos do pai no ciclismo nacional, enquanto Tiago Monteiro vê já o filho Noah a brilhar nos karts. O futebol é a modalidade em que mais filhos seguem as pisadas dos pais. Mas há outras.
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De avós para netos, cruzando pais e filhos, a história do desporto está repleta de laços familiares gloriosos, mesmo se a sucessão genética de talento também exponha herdeiros que saem aos seus e degeneram. O desporto português tem cultivado ao longo das últimas décadas dinastias familiares de relevo nacional e internacional, atravessando atletas, treinadores e dirigentes, numa lista encabeçada pelo clã Mourinho no futebol. Mas há também heranças geracionais no ciclismo, no automobilismo ou no hóquei em patins.

Na véspera de se tornar ciclista da emblemática Hagens Berman Axeon, Diogo Barbosa assume querer construir uma carreira em nome próprio, sem ser conhecido como "o filho do Cândido", o pai de quem espera vir a herdar um amuleto (um fio de ouro que a avó ofereceu ao pai e que há de levar numa Grande Volta).

Mas façam-se as apresentações: Diogo, o miúdo de 20 anos que a partir de 1 de janeiro vai representar a maior fábrica de talentos do pelotão internacional, é filho de Cândido Barbosa, o Foguete da Rebordosa, que foi a figura mais carismática do ciclismo nacional entre o final do século passado e a primeira década deste.

Diogo Barbosa é também o jovem que convenceu a Hagens Berman Axeon a oferecer-lhe um contrato, algo que descreve como um sonho que conseguiu concretizar e "um enorme orgulho, uma enorme satisfação". "Basicamente, o João [Correia] pediu-me a conta da base de dados onde colocava os treinos... Passado cerca de três semanas, ligou-me a dar-me os parabéns, a dizer que ia para a equipa do Axel [Merckx]... fiquei sem reação para exprimir tamanha felicidade e mal dormi de noite...", confessou à agência Lusa.

Treinado pelo Centro Mapei, "um centro com muita credibilidade, e com o qual muitas equipas do WorldTour trabalham", o jovem, que neste ano representou a espanhola Caja Rural, atribui parte do mérito neste salto a João Correia, o empresário que agencia, entre outros, João Almeida, Ruben Guerreiro ou o vencedor da Volta à Itália, o britânico Tao Geoghegan Hart.

Responsabilidade é, inevitavelmente, um termo com o qual Diogo sempre lidou nas suas pedaladas, ou não tivesse despertado para a modalidade na casa de um símbolo nacional: "Nasci no meio do ciclismo. Desde pequeno que via o meu pai a equipar-se, a sair para treinar, a correr na televisão, nos pódios. Com 10 anos, pedi ao meu pai para começar a correr, mas ele não deixou. Disse que era muito duro, para eu pensar muito bem, porque ele já sabia qual a vida que eu iria escolher se fosse esta, que iria ser bastante dura. Com 11 anos, confrontei-o e disse-lhe: "Pai, se tu começaste com 11 anos, porque é que eu não posso começar?" Ele lá me deu uma bicicleta e comecei a correr."

Ser "o filho de" foi algo que teve de aprender a trabalhar, mas, ainda assim, o facto de fazer parte de uma família que inclui também o tio Nuno Ribeiro, duas vezes vencedor da Volta a Portugal, "ajuda bastante". Diogo diz estar "acostumado" às associações, mas quer construir a sua própria carreira: "O meu próprio nome, quero que as pessoas não me chamem de "Diogo, o filho do Cândido", mas sim pelo meu nome, Diogo Barbosa."

O jovem cilcista assume que "gostaria imenso de poder participar no Giro de Itália [sub-23] e na Liège-Bastogne-Liège" e, "a nível da seleção", na Volta à França do Futuro. E depois no WorldTour. Mas será que Cândido está preparado para ser conhecido como "o pai de"? Diogo ri-se ao ouvir a pergunta, mas admite ter "uma enorme vontade" que isso aconteça.

Tal como Diogo, também Noah quer caminhar com pernas próprias. O pai, Tiago Monteiro, o único português a pisar os pódios da Fórmula 1, está orgulhoso da progressão do filho, de 11 anos, virtual campeão nacional de kartings em juvenis, a quem deteta talento inato.

Noah Monteiro praticou várias atividades desde tenra idade até se entusiasmar de vez pelos desportos motorizados e seguir as pisadas dos pais na paixão pela velocidade, já que a mãe, a modelo Diana Pereira, chegou a disputar provas de todo-o-terreno e ralis. "Indiretamente, tenho um peso grande. Se não estivesse envolvido neste mundo, de certeza que ele não teria esta vontade e paixão. Com poucos meses de vida já viajava connosco para assistir às minhas corridas. Ainda por cima um sobrinho meu corria em kartings, por isso houve aquela coisa natural de experimentá-los muito cedo", recordou o piloto portuense.

O acesso do Monteiro júnior aos karts, pequenos veículos de competição, sem caixa de velocidades, carroçaria ou suspensão, jamais testados pelo seu progenitor na caminhada até à classe rainha do automobilismo mundial, aconteceu com 4 ou 5 anos". "O karting estava agarrado a uma corda e eu ia a correr atrás dele agarrado à corda para que ele não fosse demasiado rápido. Foi uma experiência gira, engraçada e cansativa, mas o Noah adorou. Uns meses depois, voltou a andar já sozinho. Com aquela idade, quando se gosta e não há medo, a evolução é muito rápida", atestou Tiago Monteiro.

A competir desde os 7 anos, Noah venceu em 2020 o Open de Portugal e a primeira edição do Prémio Ética pela Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK), aguardando pela homologação do título da categoria juvenil do Campeonato de Portugal. "Mais do que as vitórias, gosto da atitude dele. É lutador em pista, mas sempre foi muito correto. Fora dela, dá-se bem com todos e tem um feitio simpático. É competitivo, sem ser muito agressivo. Aliás, procuro evitar isso nos pilotos que vou formando", vincou o pai.

Tiago Monteiro, de 44 anos, assume partilhar com o filho, que completou 11 anos em novembro, alguns traços de personalidade, como na concentração e na forma como se procura isolar um pouco antes da corrida, além de "rotinas de condução agressivas".

A aprendizagem de Noah também se faz de despistes, realidade patente na carreira de Tiago, que sofreu lesões cerebrais, cervicais e problemas de visão cruzada em setembro de 2017, ao embater a alta velocidade nos pneus de proteção do circuito da Catalunha. "Agora percebo bastante a reação dos meus pais quando as coisas se complicavam. Tenho muito mais stress ao ver o meu filho correr do que quando estou a competir. Uma vez, ele bateu com muita força. Não sendo grave, foi injetado para fora do carro, dizia não sentir a perna e estava aos gritos. Foi assustador e ninguém gosta de ver isso", confessou Tiago.

Durante a recuperação do acidente, que interrompeu a liderança da Taça do Mundo de Carros de Turismo (WTCR) a quatro provas do fim da época, o Monteiro sénior lançou o programa Skywalker Young Guns, focado na evolução de talentos jovens nos kartings. Noah é piloto desse programa há quase três anos e compete pela Cabo do Mundo Karteam.

Ciente da "pirâmide tão íngreme" prévia à entrada e permanência duradoura num "meio competitivo e exigente" como a elite do desporto automóvel, Tiago Monteiro, gestor da carreira de 12 pilotos profissionais, admite "sensações mistas" sobre o futuro do filho. "Adorava que seguisse as minhas pisadas, até porque adorava um dia fazer umas corridas com ele, e é bom que se despache [risos]. Penso se será mesmo isto que ele quer. Se tiver jeito, vontade, dedicação e quiser esforçar-se, cá estarei, em conjunto com a minha estrutura, para o ajudar a chegar o mais longe possível", garantiu.

Mas há mais dinastias no desporto português fora do futebol. Os Morais atravessam duas modalidades com sucesso. A segunda geração lançou no râguebi Tomaz, ex-jogador, selecionador e coordenador federativo, e Nuno, outro antigo jogador e pai de Kikas, alcunha de Frederico, o único surfista português do circuito mundial.

Já o andebolista Alexandre Cavalcanti (Nantes) sobressaiu numa família dedicada ao voleibol, e Vanessa Fernandes juntou a corrida e a natação à paixão do pai, Venceslau, vencedor da Volta a Portugal em bicicleta em 1984, para se consagrar no triatlo mundial.

Se Amaro Antunes (W52-FC Porto), vencedor da edição especial de 2020, perfaz a terceira geração de ciclistas da sua família, o base Rafael (Benfica) desponta sob orientação de Carlos Lisboa, a maior figura do basquetebol português, estatuto obtido no andebol por Carlos Resende, treinador do Gaia e progenitor de Patrícia (Colégio de Gaia) e Joana (Paris 92).

Se os hoquistas Hélder Nunes (Barcelona) e Gonçalo Alves (FC Porto) superaram o palmarés dos pais, o veterano voleibolista Miguel Maia (Sporting) partilha o balneário com o sobrinho Miguel Sá e já assiste à progressão de Guilherme (Académica de Espinho).

Por fim, mas não menos importante, Paulo abandonou as pistas em 2004 para agenciar a ascensão do motociclista Miguel Oliveira (KTM) na esfera do MotoGP, antes de Armando Marinho despertar João Sousa para o ténis e após Mariana Machado ter começado a honrar

O clã Mourinho é provavelmente um dos mais famosos do futebol português. Figura dos relvados nacionais na segunda metade do século XX, o ex-guarda-redes e treinador Félix esteve na base da ascensão de José - hoje com 25 títulos conquistados como treinador.

Ao contrário do pai, o técnico do Tottenham jamais integrou a seleção nacional, na qual pontificaram alguns pares intergeracionais, como José Águas, bicampeão europeu pelo Benfica em 1960-61 e 1961-62, e Rui, ex-avançado dos encarnados e do FC Porto.

Outros herdeiros são Miguel Veloso, do Hellas Verona e filho de António, defesa do Benfica entre 1980 e 1995, ou Tiago, defesa do Ankaragucu, que viu o pai, João Vieira Pinto, brilhar por Benfica, Sporting e Boavista de 1990 e 2000.

Raul Figueiredo teve menos longevidade nas seleções do que o seu homónimo progenitor, o Tamanqueiro, bem como André André, médio do Vit. Guimarães, face a António André, campeão europeu e mundial pelo FC Porto em 1987.

Igual lastro revela Gonçalo Paciência, do Schalke 04, à procura, em conjunto com Vasco (sub-23 do Benfica), do instinto goleador de Domingos, enquanto António Morato e João Alves alinharam mais vezes por Portugal do que os pais.

O campeão europeu em 2016, Bruno Alves (Parma), superiorizou-se ao progenitor Washington e aos irmãos Júlio e Geraldo, enquanto João Moutinho ( Wolves), melhor do que o pai Nélson e os irmãos Nélson e David. Já José Fonte (Lille) também sobressai a Rui na sucessão de Artur.

Em palcos diferentes estão José e Afonso Taira, médio do Belenenses SAD, Abílio e João Novais, centrocampista do Sp. Braga, ou Agostinho e Rui Caetano, avançado do Varzim.

Já Tiago Fernandes trocou os relvados pelos bancos sob o legado de Manuel, referência histórica do Sporting, clube no qual se destacou Pedro Venâncio, pai do defesa Frederico (Lugo).

Jorge Jesus (Benfica) foi influenciado por Virgolino, membro da geração dos Cinco Violinos, na qual brilhou Fernando Peyroteo, cujo rosto maior entre os descendentes é o sobrinho-neto José Couceiro, diretor técnico federativo.

Os Sousas já vão na terceira geração: Afonso (B SAD), depois do avô António e do pai Ricardo. Da mesma cepa, Fábio (Wolves) e Jorge (Boavista sub-23), filhos de Jorge Silva.

Há ainda o clã Vidigal, com André, do Estoril, na sucessão dos irmãos Beto, Jorge, Lito, Luís e Toni. E os Conceição: Sérgio (Est. Amadora), Moisés (Rio Ave B), Rodrigo e Francisco (FC Porto B) procuram honrar o pai, Sérgio, treinador dos dragões.

Elos desportivos mais variados tem Pedro Neto, dos wolves, ao descender de um homónimo ex-hoquista e da ex-voleibolista Cristina Lomba, tendo visto as gémeas Bruna e Débora serem campeãs nacionais de trampolins.

No dirigismo também há descendência. Os presidentes Valentim e João Loureiro foram fulcrais na projeção do Boavista até ao campeonato celebrado em 2000-01. Já em Arouca, Carlos e Joel Pinho levaram o clube à Liga Europa em 2016-17.

Já Pinto da Costa, o mais antigo e titulado presidente do futebol mundial no ativo, viu o filho Alexandre ser empresário de futebolistas.

Ana Marques Gonçalves e Ricardo Tavares Ferreira, jornalistas da Lusa

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