Dilemas de governabilidade

O crescimento dos partidos nacionalistas é apenas uma das muitas partes em jogo nestas eleições. A mais importante é a própria governabilidade da União Europeia, hoje mais em causa do que nunca, mas nem por isso mais presente na campanha.
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A governabilidade da União Europeia é a questão fundamental nestas eleições. Pela primeira vez desde que o Parlamento Europeu vai a votos (1979) as duas principais famílias políticas (PPE e S&D) não terão a maioria dos assentos. Este duopólio contribuiu para arrumar num carril de estabilidade legislativa todas as transformações que, no Parlamento, Comissão e Conselho, foram sendo assumidas por cada vez mais Estados membros em resultado do Ato Único e dos tratados de Maastricht, Amesterdão, Nice e Lisboa.

Em 2019, este duopólio de previsibilidade negocial vai terminar e entraremos noutra fase da União: mais polarizada, fragmentada e refém de uma luta negocial muito mais tensa, não só entre mais bancadas que refletem novos graus de heterogeneidade interna, mas também de posições nacionais com níveis de coesão bastante menos apurados. Não quero com isto dizer que a negociação permanente não defina a natureza das instituições europeias e da história da integração. Se há um bom salto na tumultuosa história da Europa ele está na troca da guerra pela negociação política. O que digo é que, depois de 26 de maio, o corolário desta nova era tenderá a ser mais mastigado, ruidoso, cheio de entraves, nostalgias, novos egos, num processo de decisão mais lento e, por via disso, sujeito a nova bateria de críticas.

É aqui que o debate sobre unanimidades e maiorias exige uma discussão séria. Acresce ao enquadramento pós-eleitoral descrito a futura dinâmica política da integração, muito mais assente em geometrias variáveis de participação, ritmos diferentes de aprofundamento comunitário e alcances variados. Este quadro é assumido por vários líderes europeus e parece o mais realista na próxima década. Se funcionará melhor é outra questão. Ora, tirando uma ou outra exceção (Carlos Moedas, Rui Tavares, Paulo Sande), não se ouve infelizmente mais ninguém em Portugal a suscitar os termos de um dos debates europeus mais importantes: onde e com quem estaremos? Com que influência? O fim da unanimidade nalgumas matérias tira-nos poder ou responde com mais eficácia a dilemas que também partilhamos? E nas grandes questões que podem colocar a UE na liderança da globalização, sobre as quais o Parlamento Europeu tem uma palavra na dinâmica comunitária (alterações climáticas, acordos comerciais, disrupções tecnológicas, padrões vários de segurança humana), como devemos atuar? As campanhas de caserna, ainda por cima datadas, como aquela a que penosamente assistimos em 2019, podem interessar às coutadas de poder de meia dúzia, mas estão cada vez mais longe de servir os interesses dos eleitores, cujas vidas dependem praticamente de tudo o que se decide em Bruxelas ou em Frankfurt. Ao contrário do que muitos teimam em pensar, voltámos a passar ao lado dos temas com verdadeiro impacto na vida das pessoas.

Outro nível em que a governabilidade da UE está em questão nestas eleições resulta da capacidade de articulação entre bancadas parlamentares para legitimar, em parceria com o Conselho, uma Comissão com o peso político que o momento geopolítico internacional exige. Dentro do vazio de perfis à medida dessa exigência que o leque dos Spitzenkandidaten oferece (embora Verstager e Timmermans estejam muito acima dos restantes), também não existe fora dele uma solução com autoridade política que pudesse ao mesmo tempo colher apoio do Conselho, do Parlamento e ser visto com respeito pelos homens-fortes que dominam a política internacional. Arrisco dizer que só Angela Merkel encaixa aqui, mas nem ela parece ter essa ambição nem as condições de aprovação estão alinhadas.

A hipótese Barnier retiraria França da corrida ao BCE, embora alargasse o raio de ação de Macron (que pode perder as eleições), permitindo-lhe lançar um membro do ALDE para a presidência do Conselho (Rutte?) ou para a presidência do Parlamento Europeu em regime de rotação a meio do mandato (Verhofstadt com Weber?), cedendo no alto representante para a política externa (Timmermans?). Como se percebe pela amostra, não vai ser fácil formar um corpo dirigente nas instituições com a força política que o curto prazo exige, mas pior seria se houvesse uma deriva tecnocrata. Os equilíbrios entre nacionalidades, perfis e disponibilidades são um clássico em fases pós-eleitorais na UE, mas a fragmentação partidária expectável e a falta de capital político acumulado podem trazer uma lentidão sem precedentes à definição do topo da governação comunitária.

O terceiro patamar capaz de diluir a governabilidade na UE está naquela palavrinha que ninguém pronuncia há mais de um mês mas que vai dar à costa já a 23 de maio: o Brexit. Se as sondagens não falharem, Farage vencerá as eleições com a receita mágica que continua a ludibriar 30% de eleitores, ajudado pelos trabalhistas com a sua clássica mensagem que toca em tudo e o seu contrário. Se o remain prevalecesse na agenda trabalhista e com o bom resultado que se espera dos liberais-democratas (na esteira do que aconteceu nas locais do início do mês), dos Verdes e dos escoceses, a frente de inversão do Brexit venceria estas eleições sem problema, pintando as europeias como o segundo referendo que nunca chegou a acontecer. A fragmentação desta frente é o resultado da falta de coesão interna do Labour e da crónica incapacidade de Corbyn para se diferenciar do plano da senhora May. O risco? Farage ganhar outra vez, depois de tê-lo feito nas europeias de 2014 e no referendo de 2016.

O que este cenário traz à governabilidade da UE, para além de acelerar a demissão de May - que ao que tudo indica terá uma derrota estrondosa, abrindo um novo ciclo de imprevisibilidade negocial com Bruxelas -, é o de poder colar decisões fundamentais sobre o Brexit (nova extensão, por exemplo) a um Parlamento Europeu fracionado, com imponente expressão nacionalista, e uma Comissão por formalizar. Tudo questões, como sabemos, sem qualquer impacto na vida dos cidadãos.

Investigador universitário

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