"Digital tem vantagens mas está a devorar a essência humana"
Sociólogo de formação, Andrzej Zybertowicz, de 63 anos, falou ao DN sobre esta ideia e todas as questões associadas à era do digital. Defende, por exemplo, a criação de "esferas offline tanto a nível de áreas geográficas como de períodos de tempo. Por exemplo: nenhuma atividade online após as 21.00"
A evolução tecnológica facilitou muito as nossas vidas. Mas quando vemos grupos de pessoas que nunca tiram os olhos dos smartphones, quer estejam numa visita a um museu importante ou numa viagem de gôndola em Veneza, incapazes de ver ou de sentir, é legítimo perguntar que tipo de sociedade está a ser criada?
O que está em processo de criação pode não ser uma nova sociedade. O que está a desenvolver-se é um agregado de consumidores egocêntricos e narcisistas e de aspirantes a criadores autoproclamados e hiper individualizados. No mundo cibernético vemos que há mais pessoas ansiosas por falar, escrever e produzir vídeos do que as que estão dispostos a ouvir, ler e ver.
É apologista de uma abstinência cibernética, sobretudo para as crianças, porque, como diz, muitas famílias têm a estranha sensação de que um estranhou entrou nas suas casas e lhes roubou os filhos. Como é que essa ideia poderia ser posta em prática?
Como sociólogo estou ciente que é pouco provável quaisquer novas práticas espalharem-se sem o apoio de tendências, modas e acordos institucionais. Como já acontece com o slow movement (na comida, no sexo, etc...) temos que criar esferas livres de digital (offline), tanto a nível de áreas geográficas como de períodos de tempo. Por exemplo: nenhuma atividade online após as 21.00. O ponto chave é que os pais, para serem eficazes ao propor isto aos seus filhos, têm que apoiar-se em padrões mais amplos. A revolução digital tem muitas vantagens, mas é preciso que não se torne, como acontece agora, numa coisa avassaladora e irresistível. O digital está a devorar o analógico, incluindo a essência humana, o desejo espiritual de nos conectarmos com as outras pessoas. Temos que reverter ou travar esta tendência. Vejamos que a abstinência que advogo não está muito longe de algumas tendências culturais atuais. As pessoas que apreciam o culto dos corpos (fanáticos do fitness e da beleza por exemplo) podem ser muito disciplinadas em relação ao exercício físico e à dieta. Já está na hora de praticar a seletividade digital (abstendo-se de consumir junkfood digital) e, nalguns casos, até de abstinência em relação às nossas mentes.
Sempre que se discute o lado obscuro do progresso tecnológico o foco está na cibersegurança. Há dificuldade em ter consciência de outros efeitos colaterais das novas tecnologias?
Isto tem muito que ver com características cognitivas da natureza humana. Nós somos os chamados avarentos cognitivos (veja-se a teoria de Susan Fiske e Shelley Taylor) que têm tendência para seguir o caminho mais fácil em vez de escolher o menos usado. Preferimos o pensamento automático (que virtualmente não precisa de qualquer esforço) à análise atenta (que consome algum tempo e energia). Esta inclinação natural que temos é amplamente potenciada pelo marketing de consumo, o design, a publicidade, as relações públicas ou os sistemas de propaganda. Navegar na internet, jogar, instiga em nós uma ilusão de liberdade de escolha, quando, na realidade, estamos a ser deliberadamente manipulados para despender o nosso tempo, a nossa atenção e, em última análise, também o nosso dinheiro.
É autor do livro Suicide of the Enlightenment? How Neuroscience and New Technologies Devastate the Human World. Algumas empresas usam a investigação na área das neurociências por forma a tornar aplicações e aparelhos viciantes...
Tristan Harris [ex-product manager na Google] fez, recentemente, uma exposição muito interessante a este respeito. Ele sublinha o facto de algumas características viciantes terem sido desenvolvidas, não por acidente, mas porque foram desenhadas para isso.
A toda a hora as pessoas recebem avisos de atualizações de apps nos seus smartphones, deixando-os cada vez mais lentos. Isso cria a ideia de que o aparelho já não funciona bem e é preciso um novo. Estamos perante a criação de uma falsa necessidade?
É o caso dos bens suicidas, ou seja, bens equipados com software desenhados para deixarem de funcionar antes de o aparelho estar totalmente explorado. É algo bastante conhecido e, infelizmente para o ambiente, um fenómeno de negócio tolerado. Em termos gerais, parece um modelo de negócio contemporâneo que pretende manter o consumidor agarrado a fluxos intermináveis de falsas necessidades. Apesar disso, proibimos algumas drogas, protegemos os jovens do álcool. É tempo de considerar a regulação da proliferação de tecnologias manipuladoras.
Justin Rosenstein, que ajudou a criar o botão do Like no Facebook, disse recentemente ao The Guardian que o vício das apps é semelhante ao vício da heroína, que as nossas mentes estão a ser sequestradas e que as nossas escolhas não são tão livres como pensamos. No final de contas, em que é que tudo isto pode resultar?
Simples: infinitos círculos compulsivos de excitação auto induzida. Mas parece que isso ainda pode ser travado. Tristan Harris é muito perspicaz aqui. Começar pela tomada de consciência. Em segundo lugar: desenvolver novos modelos de negócio. Terceiro: instigar à pressão social. Quarto: caminhar para a tão necessária governação da internet.
Um relatório do Facebook, amplamente citado nos media internacionais, deu conta de que as pessoas estão a partilhar cada vez menos informação sobre si próprias. Chamam-lhe um colapso de contexto. Porque acha que isso pode estar a acontece?
Talvez porque as pessoas finalmente começaram a ter medo da direção para a qual as novas tecnologias as estão a empurrar. Basta lembrar que os humanos, durante séculos, conseguiam sintonizar-se e ter encontros amorosos sem precisarem de nada que se parecesse com o Tinder.