Eis um paradoxo feliz: o Festival de Cannes surge assombrado pelas convulsões da idade digital, aceitando na sua secção competitiva dois filmes da Netflix que, pelo menos para já, não têm distribuição prevista nas salas tradicionais; ao mesmo tempo, a sua secção de memórias clássicas (Cannes Classics) anuncia-se mais rica e variada do que nunca. Curiosamente, tal secção, apostada em lidar com o cinema contemporâneo também através das suas memórias, nasceu há quinze anos ligada à eclosão do digital e, muito em particular, às possibilidades técnicas que se abriam para produzir cópias restauradas de títulos mais ou menos antigos. As propostas desta 70.ª edição são tanto mais sedutoras quanto envolvem a revisitação de alguns filmes emblemáticos da história do festival, que se consolidaram como objetos de culto: por exemplo, O Salário do Medo (1953), de Henri-Georges Clouzot, matriz essencial na história do thriller, Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni, símbolo de toda uma época de muitas crises existenciais, ou All That Jazz (1980), de Bob Fosse, celebração fúnebre do musical de Hollywood. Entre as muitas cópias restauradas, surge um maravilhoso filme, realizado por Robert Redford, inédito nas salas portuguesas: A River Runs Through It (1992), baseia-se nas memórias do escritor Norman Maclean (1902-1990), evocando a pesca tradicional no estado de Montana, com a Grande Depressão em pano de fundo (no elenco está um ator então em fase de afirmação, chamado Brad Pitt)..Não vai ser possível ver tudo. Longe disso: considerando apenas a competição e a secção de clássicos, encontramos meia centena de títulos (ficando de fora pelo menos mais sete dezenas repartidas por Un Certain Regard, Quinzena dos Realizadores e Semana da Crítica). Resta esperar que os mercados - cinema, televisão e net - saibam integrar tudo isso nas suas políticas de difusão.