Dias contados
Na crise de representatividade que atravessamos é a rua quem mais ordena. Milhares de razões têm marchado no Cairo, Brasília, Istambul, Telavive, Moscovo, Paris, Londres, Nova Iorque, Madrid ou Lisboa. Não são meros protestos contra políticas públicas austeras ou decisões mal amanhadas, nem só fruto da arregimentação de sindicatos ou outras plataformas mais ou menos organizadas. Não se esgotam nas classes mais pobres, nem se definem exclusivamente pela revolta económica. São demasiado heterogéneos para percebermos, com rigor, o que ficou dos protestos, o que vinga da engrenagem e que efeitos tem sobre o poder instalado.
Há dias, nos EUA, conheci um brasileiro de 17 anos que se orgulhava de ter organizado protestos em São Paulo, mesmo tendo votado em Dilma. Estava em Chicago para estudar inglês e verba era coisa que não lhe faltava. Dizia-me que na falta de partidos, só lhe restava a rua. Pouco depois, cruzei-me com uma jornalista turca, entretanto dedicada à comunidade empresarial de Istambul, que me falou em valores durante mais de uma hora. Não estou a falar da lira turca, os valores eram outros: respeito pela comunidade local, direito ao protesto, liberdade de expressão, pluralidade política e religiosa, dignidade das mulheres. Os partidos não lhe davam resposta, por isso esteve em Taksim. Dir-me-ão que são meros exemplos (em dois colossos económicos) e que não tiram a foto sociológica do que se passa. Aceito. Mas o meu ponto não é definir a mole com requintes de perfeição: é apenas reforçar a encruzilhada política e social em que estamos metidos. Não que o protesto e a rua sejam desprezíveis, nada disso. Mas porque a falta de representatividade sentida tem um efeito perverso nas democracias instaladas. Partidos cristalizados, políticos malabaristas, decisores medíocres e corredores obscuros são a receita para o descalabro. Quem olhar para as marchas por esse mundo fora com desprezo de gabinete luxuoso tem, mais cedo ou mais tarde, os dias contados.