Diário de Werner Herzog conta a tragédia de Fitzcarraldo
O livro não precisa de ser lido além da terceira página para se perceber o principal problema logístico que o realizador Werner Herzog teve quando decidiu filmar Fitzcarraldo no cenário da selva amazónica em 1979. É sobre isso que escreve nos diários sobre esses tempos encontrados em 2004, publicados agora em edição portuguesa com o título A Conquista do Inútil.
São 350 páginas originalmente de letra tão miudinha e ilegível que o próprio cineasta teve dificuldade em a compreender, no entanto na referida página é muito claro na previsão sobre os problemas que o filme lhe iria dar: "Piso da administração da 20th Century Fox. Vale aqui como dado inquestionável que um modelo de plástico de um barco será içado por um monte acima em estúdio. (...) e eu disse o que são os meus trópicos; o dado inquestionável era que teria de ser um barco a vapor autêntico sobre um monte autêntico, não em função do realismo, mas da estilização própria de um grande acontecimento operático. A partir de então, as cortesias que trocávamos cobriram-se de uma fina camada de geada."
Para quem não tem presente a grande questão de Werner Herzog ao pretender recriar um certo realismo cinematográfico, o que se passou então foi que desejava recriar no cinema a história da vida do barão da borracha Carlos Fermín Fitzcarrald - baseado no irlandês Brian Sweeney Fitzgerald. O problema foi o de esse magnata da borracha ser muito mais teatral do que o próprio Herzog, no entanto muito mais capaz de realizar na realidade o que na ficção cinematográfica se tornou quase impossível. Ora, Herzog contratara o ator Jason Robards para protagonizar o filme, que a meio das filmagens recusou continuar a representar. Seguiu-se Klaus Kinski a fazer de Fitzcarraldo, o homem que decidiu levar um navio a vapor até à bacia do rio Amazonas através da floresta para ajudar a exploração do produto. (Não esquecer que o barão também reproduzira um teatro em Iquitos para serem apresentadas óperas à europeia, designadamente as que o tenor italiano Enrico Caruso cantava e de quem era fã.) Apesar da sua excentricidade, o barão conseguira levar o vapor até ao rio desejado com o auxílio das populações indígenas, situação que não se repetirá com Herzog, que as teve contra si a dado momento e que até foi acusado de as querer dizimar.
São esses bastidores que este diário do cineasta recorda em várias passagens datadas entre 1979 a 1981. No caso dos índios: "O Lima Times, pequeno jornal em língua inglesa, relatara que mandámos prender quatro índios, que maltratámos outros, que devastámos os seus campos durante a rodagem." No caso do vapor: "Acima da curva do rio onde queremos içar o barco sobre o monte, ouvi os homens a trabalhar na floresta, depois uma árvore gigantesca caiu." No caso da velocidade das filmagens: "Prevê-se que a nossa situação venha a piorar muito rapidamente. É cada vez menos previsível o momento em que estaremos em condições de rodar novamente."
A tradutora deste livro, Manuela Ribeiro Sanches, tem uma ótima introdução em A Conquista Inútil, e através dessas páginas iniciais poderia antecipar-se o tipo de relato que se seguirá. No entanto, nada pode dar uma pálida ideia de tudo o que aconteceu na filmagem de Fitzcarraldo. Daí que este diário se torne ele mesmo um impressionante filme do filme que Herzog quis realizar a todo o custo.
A Conquista do Inútil
Werner Herzog
Editora Tinta-da-China
350 páginas
PVP: 19,90 euros