DIÁRIO DE UM FUMADOR QUE NÃO COMPRA NEM CRAVA TABACO OU SEQUER DÁ PASSAS

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No domingo passado, perdi um texto quase pronto. Houve qualquer coisa no sistema e o pobre apagou-se. Eram nove horas da noite e o jornal deveria estar a fechar quando o texto foi para o espaço e eu tive de recomeçar do zero, com o desespero de quem conhece a maldição das repetições, sejam elas textos ou comédias: não há segundas oportunidades para primeiras impressões, nunca há segundas oportunidades em geral ou então redundam quase sempre em tragédias. As divinas excepções não são para aqui chamadas.

Aquilo a que chamamos "fechar o jornal" é um processo de grande tensão e de disparo da adrenalina para níveis deliciosos - para quem gosta da droga - ou próximos da demência, segundo a visão comum de uma pessoa normal quando olha de fora. Nesse domingo, eu já era uma fumadora que tinha abdicado, há alguns dias, de tocar em cigarros. Houve um ou outro momento em que achei que não aguentava e que entregava de bandeja a única coisa que me consola agora que não fumo: a glória da determinação.

Toda a gente sabe que a vida funciona através do mecanismo de compensações. Para abdicar dos cigarros, por exemplo, é quase inútil apontar ao fumador o pacote dos malefícios do tabaco, que toda a gente sabe de cor.

Se tentar não morrer já é a razão sólida para se deixar de fumar, há que a misturar com outras menores: conheci uma fumadora, à época já experiente em deixar de fumar, que costumava falar do "orgulho" de conseguir resistir a um cigarro depois de anos de sessões contínuas.

Uma outra curiosidade destes processos de privação de uma coisa muito boa é constatar que não se pensa o tempo todo nela. Isso é uma espécie de revelação. Constatá-lo deixa-me quase emocionada: como é possível eu, que quando me levantava pensava exclusivamente nisso, pense agora muito menos em cigarros. E consiga fazer tantas coisas sem fumar. Algumas piores, com certeza.

Não é assim logo no começo: nos primeiros dias pensa-se quase o tempo todo em cigarros. Mas depois, devagarinho, como nas viagens de avião de longo curso, o impacto da síndroma de privação vai diminuindo e a gente, maldição do costume, habitua-se.

Com uma vantagem: o tabaco tem aquela fantástica qualidade de ser uma droga cuja necessidade é tanto maior quanto é possível tomá-la. (Eu, se posso fumar três cigarros seguidos, apetece-me sempre fumar três cigarros seguidos.) Logo, a síndroma de privação começa a diminuir à medida que nos distanciamos da coisa. Ou eu estou a delirar ou é mesmo assim (embora, eventualmente, o delírio também faça parte da síndroma). A lei do tabaco é muito estúpida, mas se eu fumasse estaria muito mais irritada por não poder fumar do que agora que não fumo. Confuso? Também para mim. Mas verdadeiro.|

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