Diário de Cannes (2)
_Dia 1As 07h50 da manhã já está instalado o caos à porta do Palais Lumière. São quase 2500 lugares mas para entrar está o dobro das pessoas. É o caos habitual mas mais ampliado: o filme justifica, é o muito esperado A Árvore da Vida, de Terrence Malick, com Brad Pitt e Sean Penn. É uma obra de um artista para Deus, a saga de uma família americana dos anos 1950 mesclada de ensaio sobre a origem do planeta e o fim do sonho americano. Cannes não estava preparada para isto e até há assobios de certos jornalistas. Mas há uns anos também Pulp Fiction e Crash eram aqui assobiados e hoje fazem parte do panteão das grandes obras-primas do cinema. O certo é que A Árvore da Vida foi o grande, grande filme do festival, premiado, como não podia deixar de ser, com a Palma de Ouro.E porque em Cannes há sempre cocktails e mais cocktails, na tenda da Chivas, Robert de Niro é esperado para falar da FilmAid, uma organização de caridade que leva cinema aos locais mais carenciados do mundo. O actor e presidente do júri de Cannes é um dos patrocinadores da Filmaid, juntamente com o whisky em questão. Uma hora e meia depois da hora marcada e já com os croquetes (que não são bem croquetes, é fingerfood a armar ao pingarelho) em versão migalhas, os jornalistas desesperam. Por fim, De Niro, com sorriso matreiro e num mau dia de cabelo, lá aparece e é apresentado. Faz uma vénia e é só isso..._Dia 2Jodie Foster não rodava um filme como realizadora há década e meia. Voltou com O Castor (estreia em Portugal já no próximo dia 16 de Junho) e teve direito a selecção oficial fora de competição. Mel Gibson é um homem a entrar em estado de depressão. De repente, acorda da letargia mas arranja um alter ego numa luva-boneco de um castor. Trata-se de uma comédia dramática algo convencional mas com veneno contagiante. Como quem não quer a coisa, Foster fez um filme sobre o actual mal-estar da América. Num encontro com a imprensa numa suite do Hotel Carlton chamada Sophie Marceau, confessava a alguns jornalistas que na sessão de gala o seu actor e amigo Mel Gibson estava a tremer de nervosismo antes da subida das escadas do Palais.Menos nervosos parecem estar alguns actores portugueses que vieram fazer uma visita a Cannes. Albano Jerónimo foi visto numa esplanada e em algumas festas, sempre tranquilo. Também a vedeta da TVI Pedro Lima experimentou uma noite de glamour quando subiu as escadas para ver Le Havre, o novo filme de Aki Kaurismaki, uma bela meditação sobre a nova ordem mundial. À saída confessava grande admiração pelo actor Jean-Pierre Darrousain, ovacionado histericamente na gala. Depois seguiu para uma festa muito benzoca de uma marca de whisky que o trouxe a Cannes. Não por acaso, uma das maiores relações públicas europeias enviava à imprensa um e-mail anunciando a disponibilidade do actor para uma sessão de entrevistas. Uma sessão para um actor que não tem aqui nenhum filme... Cannes tem estes absurdos._Dia 3E o dia, bem de manhã, começa com a sessão de Melancholia, o filme sobre o fim do mundo de Lars von Trier. Em vez de ser a sua obra-prima é antes um dos seus piores filmes. Uma combinação muito mastigada de colecção de ódios e estética de videoclip novo-rico. O dinamarquês misantropo está cada vez mais especialista em torturar actrizes. A vítima agora é a pobre Kirsten Dunst, uma espécie de corpo mártir que se não está a chorar está nua ou a dormir - mas acabou por ganhar o prémio de melhor actriz do festival. No final, os acólitos da família de Von Trier aplaudiram timidamente ao lado de um pequeno coro de vaias.Logo a seguir, o choque. A tal conferência de imprensa onde o dinamarquês brincou com o nazismo e horas mais tarde foi banido do festival. A organização, num comunicado, afirmou que Lars fica para sempre persona non grata do festival. Para nós, será mais persona non graça...No passeio junto à praia encontra-se de tudo um pouco. A tendência este ano são desenhadores de retratos. A caminho do Palais, num curto espaço de tempo esbarrava com Alexandre Melo e Ryan Gosling. O português, conhecido comissário de arte e assessor cultural do primeiro-ministro, confessava que estava em Cannes sobretudo para ver cinema. O americano seguia em passo acelerado e em conversa íntima com Henry Hopper, uma das figuras deste festival e protagonista de Restless, de GusVan Sant, outra das desilusões. Ninguém na Croisette deu com eles porque ao mesmo tempo havia um sumptuoso fogo-de-artifício na praia. _Dia 4Numa praia onde a areia é espaço privado de um hotel, NadineLabaki, a actriz e realizadora de E Agora Vamos para Onde?, musical libanês que homenageia as mães que perderam filhos na guerra, está cada vez mais Monica Belluci. Um espanto de mulher que quando vê um jornalista português desata a ditar cartas de amor a Lisboa. Uma cidade que conhece bem e na qual promoveu há uns anos o seu anterior filme, Caramelo. Desta vez não tem nada para festejar. As suas boas intenções humanistas não servem para tornar este musical trapalhão num bom objecto de cinema. Depois, tempo para dois dos melhores filmes do festival, Drive, de Nicolas Winding Refn (ganhou o prémio de melhor realizador), e La Piel Que Habito, de Pedro Almodóvar. O primeiro é um thriller gélido que homenageia com mestria uma estética à anos oitenta. Quanto ao novo Almodóvar, pode dizer-se que se trata de uma elegantíssima dissertação sobre identidade e género. Na sessão de gala foi aplaudido de pé durante muitos minutos e Antonio Banderas, o protagonista, estava emocionado.Numa festa em honra dos cineastas da selecção oficial, entre os muitos ilustres convidados estava Julian Casablancas, o vocalista dos The Strokes, que confessou à NS' que já não se lembra do último concerto que deu no Meco no Festival Super Bock Super Rock. Dias antes, Madonna e Kanye West também tinham estado a cirandar pelas festas. Cannes tem sempre esta poeira de rock"n roll.Acabado o desfile dos filmes de competição, três críticos portugueses confessavam descontraidamente num dos corredores do Palais a sua Palma de Ouro. Tiago Alves (RTP), João Lopes (DN) e José Vieira Mendes (RTP Memória) são do clube A Árvore da Vida. Boa escolha: acertaram em cheio.ENTREVISTAA musa do festivalJessica Chastain esteve em dose dupla no festival. Foi mãe tortuosa em Take Shelter, de Jeff Nichols, e mãe feliz em A Árvore da Vida, de Terrence Malick, acabado de estrear em Portugal. É a actriz novata com quem todos querem trabalhar. Falámos com ela durante o turbilhão de Cannes...Passou muito tempo a gravar voz-off e a voltar ao plateau de A Árvore da Vida, cujas filmagens começaram há três anos...É verdade, mas o Malick é a pessoa mais querida do mundo. Ele ligava-me por vezes com aquela voz tímida, a dizer-me: «Não te importas de leres mais umas páginas?» Claro que para mim nunca era um problema. Recebia o que tinha de ler por correio-expresso e lá ia para um estúdio ler frases cujo sentido não percebia...E o que acha do resultado?É lindo!Por que razão todos querem filmar consigo? É o efeito Malick?É uma coisa incrível, não é? O que se passa é que, por uma outra razão, alguns filmes que fiz entretanto ainda não estrearam, inclusive o meu primeiro filme, uma versão de Salomé, por Al Pacino. Foi ele quem me descobriu numa peça de teatro. Lembro-me de ter recebido uma chamada dele enquanto estava de férias com amigos na Austrália. Apanhei logo o avião e fui fazer uma audição.Está preparada para a fama?Sinto que a minha vida vai mudar mas nem quero pensar nisso. Ainda assim não acredito que me transforme numa daquelas estrelas de cinema de primeira grandeza. Sou sobretudo actriz. Actriz e não uma estrela de cinema.