Diário de bordo: Brasil, parte II
E assim que se apagaram as luzes, que se fechou a porta atrás de mim e que a agitação deu lugar ao silêncio, respirei fundo, mas não consegui descansar. Como se fosse possível descansar depois de tão profunda comunhão entre um grupo de pessoas que há duas horas atrás eram desconhecidas e que agora se sentiam como velhas amigas. No primeiro dia em São Paulo, aproveitámos para passear um pouco e conhecer duas ou três avenidas de uma cidade que tem o dobro da população portuguesa. Muitos não a descreveriam como uma cidade bonita. Mas a sua vida cultural, agitada, pujante e a sua oferta cosmopolita, infindável nas suas várias formas, ajudam ao encantamento que sente quem por lá passeia. A temperatura estava amena, considerando que era Inverno. Ao olhar à minha volta, nem todos pareciam partilhar da minha opinião. Envoltos em casacos grossos e cachecóis quentinhos, como que diziam que a sensação de frio é relativa. Muito relativa.
De volta ao hotel, os nervos começavam a apertar à medida que chegava a hora do concerto. O SESC Santana é um centro cultural público que dispõe de diversos serviços culturais e de lazer a baixo custo para usufruto da população. Ficava a poucos metros do hotel, por isso, podíamos ir a pé para lá. Tirando algumas zonas mais problemáticas, São Paulo é uma cidade relativamente segura. À chegada esperavam-nos alguns jornalistas. Conversámos um pouco com cada um deles, falámos do momento que se vive na música portuguesa, da variedade e qualidade de propostas existentes, do percurso da Deolinda e da curiosidade que sentiam relativamente à nossa música e à forma como seria recebida nos concertos de sábado e domingo.
Findo o ensaio de som, restava-nos pouco tempo para nos vestirmos, para eu me maquilhar e para aquecermos. Quanto mais nervosos estamos, maior é o silêncio que se ouve nos corredores dos camarins. Sim, é um silêncio que se ouve. É pesado, é nervoso, é agitado. Adivinham-se os sons que estão ali à espera da primeira oportunidade para saltar cá para fora e que, enquanto não se podem revelar, se transformam em gestos nervosos. Passar a mão pelo cabelo, verificar se os in-ear estão bem colocados, ajustar a roupa. Confesso que não sabia o que iria acontecer. Se iriam entender as letras e as apresentações, se estariam predispostos a aceitar aquele espectáculo.
A experiência ensinou-me a nunca encarar nenhum concerto como «favas contadas», por mais que sintamos que o público está ganho à partida. A verdade é que já há muito tempo que o público brasileiro nos vinha pedindo concertos no seu país. E que desde que anunciámos as datas se mostravam ansiosos por aquele momento. Mas nem sempre o entusiasmo se concretiza em aplausos ou em troca emocional. Por isso, foi com cautela que pusemos os pés naquele palco. E foi na felicidade mais plena que de lá saímos.
O que aconteceu naqueles dois dias foi intenso de mais para poder ser explicado por palavras. Lembro-me dos risos no final do Pois Foi, da emoção contida no Passou por Mim e Sorriu, dos fon-fon-fons cantados a uma só voz e lembro-me de ver cada vez mais gente a juntar-se à beira do palco, de pé, a dançar. De voltarmos uma primeira vez ao palco e de permanecerem de pé, mesmo quando tocávamos Eu Tenho Um Melro. De voltarmos uma segunda vez, coisa rara, disseram-nos, e cuja culpa atribuímos às palmas que teimavam em não abrandar. De pularmos de alegria quando voltámos aos camarins. Dos abraços de toda a equipa, emocionada. Voltaremos em breve, Brasil. Obrigada por tudo.