Diabólicas, salgadas, borbulhantes, mas nunca verdes. As estrelas que contam a história do Universo
Se exercesse a sua ciência neste nosso século, Erhard Weigel seria o que comumente denominamos um divulgador científico. No seu século XVII, o matemático, filósofo e astrónomo alemão, nascido em 1625, foi entendido como um democratizador do conhecimento, ao alargar à comunidade não científica uma visão dos mistérios do universo. Intento que Weigel materializou através do seu Astrodicticum Simplex, um dispositivo astronómico constituído por um globo celeste onde era possível apontar um pequeno ponteiro para uma estrela específica; ao mesmo tempo, um grande ponteiro indicava a posição da estrela no céu. Weigel estaria distante de imaginar que o século XXI nos entregaria a Internet e a sua galáxia blogosfera, menos ainda que o seu Astrodicticum Simplex apadrinharia o blogue de um astrónomo austríaco, nascido em 1977. Divulgador científico, com uma tese de doutoramento sobre a probabilidade de colisão de asteroides próximos à Terra com planetas do sistema solar, Florian Freistetter conta com trabalho feito nos observatórios universitários de Viena, Jena e Heidelberg. Escreve Freistetter em Astrodicticum Simplex: "Um cientista não deve apenas conduzir investigação, mas também, no mínimo, prestar atenção idêntica à transmissão desse conhecimento aos alunos, mas também ao público em geral. Infelizmente, o ensino e as relações públicas nas universidades não têm atualmente o status que deveriam".
Em 2023, o também autor, lançou-se numa empresa que nos leva, leitores, a uma viagem incomensurável no tempo e no espaço. Florian Freistetter "viajou" aos confins do Universo para verter em livro a história de uma centena de estrelas. Fá-lo com a intenção de nos narrar a história do mundo, revelada nas singularidades de cada um dos corpos celestes que enxameiam as mais de 300 páginas de A História do Universo em 100 Estrelas (edição Planeta).
"A luz das estrelas revelou-nos como tudo começou há 13 800 milhões de anos, como nasceu o Sol e o planeta em que vivemos. Deu lugar a mitos e lendas que nos serviram de estímulo para atingir êxitos tecnológicos e inspirou o pensamento filosófico sobre o que é que nos constitui como seres humanos. Atualmente, impulsiona-nos a encontrar a resposta para a pergunta de se estamos sozinhos no Universo e como poderia ser o nosso futuro no cosmos", sublinha o autor na introdução que faz ao livro.
A seleção de estrelas que Florian Freistetter inclui no seu livro "não pretende ser um inventário do cosmos. As cem estrelas que escolhi para este livro quase não têm nada em comum. Umas são brilhantes e fazem parte, há milhares de anos, dos relatos que as pessoas narram sobre o céu; outras possuem tão pouca luz que só se conseguem distinguir com os melhores telescópios. Umas têm nomes famosos; outras apenas denominações cheias de números e letras em catálogos. Há estrelas grandes e pequenas, próximas e longínquas. Estrelas que falam sobre colisões galácticas e nos dizem como funciona um buraco negro. Estrelas que têm à sua volta a girar os planetas mais estranhos de toda a ficção científica. Algumas estrelas permitem-nos vislumbrar a origem do Universo e outras podem mostrar-nos como será o seu futuro", lemos nas páginas que contextualizam a obra.
Um inventário de estrelas que não inclui corpos verdes. "Só nos livros infantis", como sublinha Freistetter, "encontramos uma estrela verde como o lar do robô Schlupp". "Podemos ver no firmamento estrelas amarelas, bem como azuis e vermelhas. Em todo o caso, sempre que as condições e os nossos olhos no-lo permitam, pois, caso contrário, na maior parte das vezes vemos apenas uma luz branca", esclarece-nos o astrónomo austríaco, vencedor em 2012 do Prémio IQ, galardão concedido como homenagem a pessoas e organizações com contribuição para o bem-estar público e investigação científica sobre a inteligência humana.
Nas páginas do seu livro, Freistetter viaja longínquo no espaço ao encontro da GRB 080319B, a estrela mais distante que já vimos a olho nu: "A 19 de março de 2008 foi possível observar o Universo a olho nu como nunca antes se tinha feito. Durante pelo menos 30 segundos e se por acaso alguém estivesse a olhar à hora apropriada no lugar adequado. Nesse momento, na constelação de Boieiro apareceu uma estrela nova, não muito brilhante, que se pôde ver sem meios óticos. Mas na verdade essa nova estrela era a explosão mais violenta que se tinha registado até ao momento. A sua luz demorou 7500 milhões de anos a atravessar o Universo para chegar até nós. O que aconteceu há tanto tempo numa galáxia muito longínqua chama-se raios gama e quase pode dar um bocadinho de medo".
O autor também se aproxima de ermos solitários, nomeadamente o do objeto WISE 0855-0714. "Não é uma estrela, mas também ainda não sabemos muito bem como chamar a objetos como este. O WISE 0855-0714 é um objeto cuja massa é entre três e dez vezes a de Júpiter, que se move pelo espaço a uma distância de 7,5 anos-luz do Sol. Sozinho, sem nenhuma estrela que gire à sua volta. Por isso é difícil qualificá-lo de maneira inequívoca como planeta, já que, em geral, na astronomia estes são apenas corpos celestes que orbitam à volta de uma estrela. Porém, perto do WISE 0855-0714 não há nenhuma estrela à qual possa pertencer. É um solitário, destino que partilha com outros. Calcula-se que o número de planetas independentes, vagabundos da nossa Via Láctea, chegue aos 400 mil milhões: quase o dobro de estrelas que existem na nossa galáxia!".
Números que nos invocam à reflexão, como aqueles que o astrónomo expõe relativos à V1, que revela horizontes para lá da Via Láctea e que nos leva à história do astrónomo americano Edwin Hubble e ao ano de 1923, quando riscou um N numa das suas chapas fotográficas astronómicas e o substituiu pelas letras "VAR". "A VI é a estrela mais importante do Universo, pelo menos quando se trata de entender as verdadeiras dimensões do mesmo", escreve o astrónomo, para acrescentar, ""aqui está a carta que destruiu o meu Universo", afirmou o astrónomo Harlow Shapley quando Hubble lhe relatou a sua descoberta. No início do século XX ainda não sabíamos bem como era o Universo em que vivíamos. Sabia-se que era grande e que, além do Sol, existiam muitas outras estrelas, muito longínquas. Mas também era possível observar no firmamento estranhas nebulosas, objetos parecidos com nuvens que, sem dúvida, não pareciam estrelas e para os quais não se encontrava nenhuma explicação científica". Hubble agigantou o Universo para além do então imaginável. Freistetter leva para o seu livro um ilustre grupo de cientistas como Dorrit Hoffleit, que encontrou a resposta para a pergunta: "Quantas estrelas existem?"; Amina Helmi e a sua investigação de fósseis galácticos e Cecilia Payne, que averiguou a composição das estrelas. Ou como Georg von Peuerbach abriu caminho para o modelo heliocêntrico do Universo, e James Bradley, que demonstrou sem sombra de dúvidas que a Terra gira à volta do Sol.
Com a astrónoma americana Henrietta Swan Leavitt, o autor de A História do Universo em 100 Estrelas, encontra pretexto para nos apresentar a estrela Delta Cephei, assim como o percurso da mulher contratada pela Universidade de Harvard, através da figura de Edward Charles Pickering, diretor do Observatório de Harvard. Henrietta, um "computador humano" - como se designava na época a pessoa que fazia cálculos matemáticos -, "demonstrou-nos como é que se podiam utilizar as Cefeidas para medir a distância e, graças ao seu trabalho, foi possível entender um pouco mais as verdadeiras dimensões do Universo", substancia Freistetter.
Ao elenco de estrelas de Freistetter não escapam extravagâncias como a Algol que, entre outras designações, assume os nomes de Estrela do Diabo, Gorgonea Prima (em alusão às górgonas, monstros mitológicos femininos) e Cabeça do Demónio, e tudo graças ao seu misterioso piscar pulsante; ou a S0-102, "a desportista extrema das estrelas. Passa mais depressa do que qualquer uma pelo centro da nossa Via Láctea e, de passagem, ajudou-nos a entender o surpreendente objeto que se encontra ali. É que, no coração da Via Láctea, há um buraco negro supermassivo que pesa quatro milhões de vezes mais do que o Sol", relata Florian Freistetter, para continuar "para dar uma volta completa a toda a Via Láctea, o nosso Sol precisa de cerca de 220 milhões de anos; a S0-102 completa a sua órbita em redor do buraco negro central em apenas 11,5 anos, tal como descobriram a astrónoma americana Andrea Ghez e a sua equipa em 2012. Por isso, é a mais veloz de todas as estrelas que conhecemos".
O rol universal do autor austríaco detém-se em Icarus, "a luz da estrela mais longínqua": "Icarus é uma estrela extraordinária, pelo menos vista da Terra. Em 2013, quando chegou pela primeira vez ao espelho do telescópio espacial Hubble, a sua luz tinha efetuado uma longa viagem. É difícil imaginar que esta partisse de Icarus 934 mil milhões de anos antes. Naquela altura, o Universo não era nem metade tão velho como é hoje".
A viagem de Freistetter não enjeita a procura de objetos celestes no próprio planeta Terra, como a "Estrela 23 que mede apenas um centímetro. É composta por ouro, tem quase 4000 anos e é obra do homem. Não se encontrou no firmamento, mas sim no centro da Alemanha, enterrada perto da localidade de Nebra, no estado de Saxónia-Anhalt. A estrela 23 faz parte do famoso disco celeste de Nebra, e apesar da sua origem terrena não é menos interessante do que os seus modelos cósmicos". Um artefacto antigo que "na sua época também era um objeto valioso e único, um símbolo da ligação existente entre a vida terrena do homem e a atividade celestial dos deuses", adianta Freistetter.
O percurso que o autor nos convida a percorrer é longo, mas nunca cansativo. Cem estrelas permitem a Florian Freistetter "entregar-nos" uma WASP-12, à qual chama o "asfalto húmido no Universo"; Alphekka, "uma joia incolor na coroa celeste"; HD 209458, "a estrela e o planeta que se evapora", Orion Source I, "uma estrela bastante salgada"; COROT-8, "o lar das superestrelas" ou a R136a1, "o monstro na nebulosa da Tarântula": "a R136a1 é a mais luminosa e de massa mais elevada de todas as estrelas conhecidas pela astronomia. A sua luminosidade é dez milhões maior do que a do Sol (...). A R136a1 pesa nada mais nada menos do que 265 vezes mais do que o Sol e, se fosse o centro do sistema solar, a Terra, devido ao enorme aumento da força de atração, não demoraria 365 dias a orbitar à sua volta, mas sim apenas 21 dias", escreve o astrónomo austríaco.
A 15 de agosto de 1977, perto de duas semanas após o nascimento de Florian Freistetter (28 de julho), o Big Ear Radio Telescope, no estado do Ohio, detetou um sinal pujante vindo do espaço. Prolongou-se 72 segundos e entregou à comunidade científica um mistério. O sinal revelou-se tão incomum que Jerry Ehman, o astrónomo responsável pela deteção, anotou a palavra "Wow!". De lá para cá, o evento ficou conhecido como "WoW! Signal". Em 2020, o astrónomo amador Alberto Caballero encontrou uma solitária candidata a berço do sinal: a estrela 2MASS 19281982-2640123, localizada na constelação de Sagitário, a uma distância de 1.800 anos-luz. Florian Freistetter não inclui no seu livro a singular 2MASS 19281982-2640123, e a suposta emissão de um sinal alienígena dali proveniente, embora enverede no trilho de vida extraterrestre, o da estrela KIC 8462852, a 1470 anos-luz da Terra. Em 2015, um padrão de luminosidade singular na referida estrela levou o astrónomo Jason Wright a fazer entrar em jogo os alienígenas ao afirmar que, em teoria, as observações a partir da Terra podiam ser causadas por megaestruturas. "A KIC 8462852 continua a ser um mistério para a astronomia, mas é pouco provável que encontremos aí alienígenas", conclui Freistetter.
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