Diabetes. A doença que não é um bicho de sete cabeças

No dia em que a Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal assinala os 91 anos, três doentes falam das suas experiências.
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À terceira é de vez. Hoje Maria Teresa Carvalho, 64 anos, vai receber finalmente a medalha da Associação Protetora dos Diabéticos de Portugal (APDP) no encontro que assinala os 91 anos da instituição. Teresa faz parte do grupo de 15 pessoas que são homenageadas por viver com a doença - que afeta mais de um milhão de pessoas em Portugal e que não para de crescer - há mais de 50 anos. Para se ser exato no caso de Teresa são 53 anos. Um bicho de sete cabeças? Nem pensar. Não o é para ela, nem para José Cancella - que tem diagnóstico há 35 anos -, nem para António Costa, com diabetes há dez.

A diabetes é uma doença crónica que se caracteriza pelas baixas de açúcar no sangue. Os dois tipos mais conhecidos são o 1, diagnosticado em crianças e que resulta da incapacidade de o pâncreas produzir insulina. O tipo 2 é diagnosticado a pessoas mais velhas e está associado a estilos de vida mais sedentários e a uma alimentação mais rica em calorias. O tratamento é feito com comprimidos e se necessário insulina.

Teresa tinha 11 anos quando soube que tinha diabetes tipo 1. Estava "muito magrita" e os médicos suspeitavam de uma infeção intestinal. "Até que fui aos anos de uma amiga e a mãe dela era enfermeira e detetou hálito a acetona (cheiro frutado que é um dos sintomas da doença). A partir daí comecei a fazer insulina", conta. Os pais "aceitaram muito bem" e sentiu que estava bem acompanhada. Mas para uma miúda de 11 anos isso não evitou que sentisse "vergonha porque era diferente" e deixou de ir a festas "porque não podia comer bolos". As amigas sabiam que ela tinha diabetes, mas o tema não era assunto de conversa nem para uma nem para as outras.

Discriminação garante que nunca a sentiu, nem mesmo naquela altura em que pouco ou nada se falava da doença. "Nunca tive problemas. Não me vejo como doente, mas como uma pessoa que precisa de ajuda de insulina para viver." Uma lição ensinada pelo médico. Aos colegas de trabalho sempre disse que era diabética e "avisava que se tivesse um tanglomanglo para darem açúcar". "Em qualquer lado faço a injeção, no autocarro ou no metro. Antigamente era mais complicado."

E depois da explicação é fácil perceber porquê. Em vez da caneta que agora se usa e já traz a dose individual de insulina, antes era preciso tirar um curso a sério. "As seringas eram de vidro, as agulhas grossas. Tinham de estar sempre em álcool. Tirávamos uma e tinha de ser seca ao lume. Depois tinha de arrefecer para tirarmos a insulina", recorda.

"E as lancetas para o teste? Se não se tinha cuidado lá ia um dedo", atira António Costa, 68 anos. Dos três é o único que não faz insulina, só comprimidos. O diagnóstico de diabetes tipo 2 está feito há 10 anos, mas já tinha a experiência da filha, de 33 anos, com diabetes tipo 1 e mais dois casos na família. "Quando soube da minha filha [ela tinha dez anos] fiquei chocado. Apanhou-me de surpresa, mas depressa passou quando vi que ela era capaz de se tratar sozinha. A mim? Foi bem feito. No meu caso foi mau comportamento, comida e bebida", conta, acrescentando que mudou radicalmente de vida. "Fugia dos médicos como o diabo da cruz. Desde que sou seguido na APDP faço exames a tudo: coração, pés, olhos e rins".

Não foi só isso que mudou. "Estou muito mais ativo. Faço caminhadas de oito a dez quilómetros todos os dias e perdi peso. Antes as minhas caminhadas eram ir ao café", diz. Ao mesmo tempo mostra com orgulho a foto que tem no telemóvel do ecrã do medidor de glicemia. "Faço sempre medições antes de começar a caminhada, a meio e depois. Estão a ver? Os valores são bons." Teresa e José Cancella olham e confirmam.

José fala hoje no encontro da APDP. "Somos nove irmãos e só dois é que não têm. A minha mãe era diabética e acabou a vida sem as duas pernas a fazer hemodiálise. Para nós foi uma lição fortíssima", conta. José vive com diabetes tipo 2 há 35 anos e faz insulina. "Também fiz muitas asneiras quando era novo, bebida e comida. A minha mãe era gastrónoma e diretora de uma vista de banquetes antes do 25 de abril. Comia-se bem lá em casa. Sempre que havia fotos era uma maravilha, era dia de festa."

Foi o pai, que era médico, que lhe fez o diagnóstico. "Estava a emagrecer e ele disse-me para urinar para uma fita. Deu logo castanho." Passou a comer diferente, melhor, e fez anos mais tarde um curso de escanção "para não beber tanto em qualidade e passar a beber em qualidade". Como Teresa e António, faz consultas regulares na APDP. Não que não leve uma vida normal, mas porque ter problemas nos pés e rins "assusta".

"Hoje em dia fazemos uma vida normalíssima. Podemos comer o nosso doce, não como antes mas há espaço para tudo. Antigamente não se podia comer pão. Hoje há o Pão São que é excelente. Como sempre uma fatia ao pequeno-almoço. Ainda tenho dúvidas quando aparecem valores altos e já tenho 35 anos de doença. Basta uma noite mal dormida. Há sempre qualquer coisa a descobrir", diz, contando que pediu "para ir trabalhar para o Jamor porque tinha hipótese de fazer natação e caminhadas". "Lá tenho tudo. Faço dez a 15 quilómetros de bicicleta."

Para quem vive há tantos anos com a doença, sentem que mudou a forma como se vê a diabetes? "Mudou radicalmente. A diabetes agora é uma coisa que se fala abertamente e os cuidados são explicados na televisão e em todo o lado. Antigamente era vista como uma doença terrível. Mas acho que juntamente com a informação se deve dar indicações sobre os sintomas." António completa. "São boca seca, cansaço, urinar muitas vezes. Afeta as nossas capacidades mesmo as sexuais. Não há que ter vergonha de falar." Por isso insiste na informação: "Ainda há pessoas que não sabem. É preciso falar mais sobre a diabetes." Di-lo com memórias de amargo de boca por ter sentido na pele de pai a discriminação sobre a filha quando esta era pequena e no Algarve lhe disseram que "não podia ir para piscina porque tinha diabetes".

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