Dia do Trabalhador "histórico", mas marcado pela violência em França
Foi um Dia do Trabalhador como há duas décadas não se via em França - e na altura o 1.º de maio calhou entre as duas voltas das presidenciais -, mas a mobilização da 13.ª jornada de protesto contra a reforma das pensões não alcançou os números de algumas das anteriores. E, mais uma vez, as manifestações ficaram marcadas pela violência em várias cidades, nomeadamente Paris. A primeira-ministra francesa, Élisabeth Borne, considerou "inaceitáveis" as "cenas de violência".
Segundo a Confederação Geral do Trabalho (CGT), 2,3 milhões de pessoas (550 mil só em Paris) participaram nos desfiles. Um Dia Trabalhador que a confederação apelidou de "histórico". Como sempre, as contas do Ministério do Interior são outras, falando de 782 mil manifestantes em todo o país e apenas 112 mil na capital. Olhando apenas para os números oficiais, é a mais forte mobilização neste dia desde 2002- quando cerca de 1,3 milhões estiveram na rua, no meio do duelo presidencial entre Jacques Chirac e Jean-Marie Le Pen.
A contestação à reforma das pensões já conseguiu contudo maior envolvimento dos cidadãos, com os sindicatos a alegar que em pelo menos duas ocasiões mais de três milhões de pessoas estiveram nas ruas. Ainda assim, esta segunda-feira foi o melhor dia desde a nona jornada de protesto, a 23 de março.
A reforma das pensões foi aprovada a 16 de março sem passar pelo Parlamento e promulgada pelo presidente Emmanuel Macron a 15 de abril, no mesmo dia em que o Conselho Constitucional deu a sua luz verde à maioria das medidas - nomeadamente a mais polémica, que prevê o aumento da idade da reforma dos 62 para os 64 anos.
Macron e o governo querem virar a página e avançar com outras reformas, mas essa tarefa está a revelar-se difícil. O presidente pediu "cem dias de apaziguamento", prometendo depois avaliar a situação - o prazo termina no dia nacional, 14 de julho - com Borne a apresentar um plano com outras medidas que seriam aprovadas até lá.
"A página não vai ser virada enquanto não houver um recuo na reforma das pensões. A determinação para ganhar esta intacta", disse a secretária-geral da CGT, Sophie Binet, na manifestação de Paris. "A mobilização ainda é muito, muito forte", referiu por seu lado o líder da Confederação Francesa Democrática do Trabalho (CFDT), Laurent Berger. "É um sinal que o ressentimento e a fúria não estão a diminuir", acrescentou. Pela primeira vez desde 2009, as oito principais confederações francesas apelaram aos protestos em França.
Os protestos ficaram de novo marcados pela violência. A meio da tarde, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, revelava no Twitter que um polícia estava em estado grave em Paris após ter sido atingido por um cocktail molotov . "Se a grande maioria dos manifestantes eram pacíficos, em Paris, Lyon e Nantes, em especial, a polícia enfrenta bandidos extremamente violentos que vieram com um objetivo: matar polícias e atacar a propriedade alheia", escreveu o ministro, reiterando que esta violência devia ser "condenada sem reserva". Também Borne condenou a violência.
Mais tarde, o Ministério do Interior disse que pelo menos 108 agentes ficaram feridos - 20 deles só em Paris. Na Praça da Nação, a polícia recorreu aos canhões de água e ao gás lacrimogéneo para controlar a multidão, sendo que em várias zonas os manifestantes destruíram montras de loja e danificaram espaços públicos. Um edifício de escritórios em construção foi incendiado junto à praça. Pelo menos 90 pessoas foram detidas em Paris, num total de 291 em todo o país.
Em Lyon, a CFDT denunciou o facto de "grupos violentos" terem "instrumentalizado" o desfile dos trabalhadores, sem qualquer ligação à luta sindical. Estima-se que haveria cerca de mil elementos radicais dos chamados "black blocs" na cabeça do desfile que estiveram em constante provocação com a polícia, tendo havido confrontos e pelo menos 40 detidos. Quatro carros foram incendiados na cidade. Já em Nantes, pelo menos dois carros ficaram destruídos pelas chamas, tendo sido detidas 29 pessoas após confrontos com as autoridades Duas dúzias de agentes ficaram feridos, assim como vários manifestantes.
Antes dos protestos, a polícia recebeu a luz verde da justiça para usar drones. No sábado, Darmanin recomendou aos autarcas que usassem estes aparelhos para efetuar a vigilância das manifestações, levando várias associações de defesa dos direitos humanos a tentar travar essa medida em tribunal. Sem sucesso. Pelo menos em Lyon, as autoridades detiveram duas pessoas que se preparavam para atacar a autarquia e que foram detetadas com o recurso aos drones.
O Conselho Constitucional travou já um referendo de iniciativa partilhada sobre a reforma das pensões, mas deverá pronunciar-se na quarta-feira em relação a um segundo apresentado pelos senadores da esquerda. Mesmo se este passar, o processo é complicado, sendo necessário recolher a assinatura de pelo menos 10% dos eleitores (isto é, 4,87 milhões de pessoas) no prazo de nove meses. E durante esse tempo, a reforma pode avançar e entrar em vigor.
Os sindicatos devem entretanto voltar ao diálogo, com Borne a abrir as portas aos representantes dos trabalhadores. Estes já tinham sido chamados ao palácio de Matignon a 5 de abril, saindo passado pouco tempo devido à recusa da primeira-ministra em falar da polémica reforma das pensões. As reuniões deverão agora ser bilaterais, podendo causar divisões entre as confederações, uma vez que há aquelas que rejeitam o diálogo sem a retirada da reforma e outras que não querem deixar de discutir outros temas.
susana.f.salvador@dn.pt