Do caos à tentativa de resolver. O Brexit em dez personagens
Três anos após o referendo que deu a vitória ao Brexit, com um resultado de 52% contra 48%, David Cameron quebrou o silêncio para lançar o seu livro de memórias a 19 de setembro último. "Sei que algumas pessoas nunca me vão perdoar por ter organizado um referendo. Outras por tê-lo organizado e perdido. Há ainda, claro, pessoas que queriam um referendo e que queriam sair que estão contentes por a promessa feita ter sido mantida", declarou numa entrevista ao The Times, a propósito do lançamento de For the Record (Para Que Conste).
No documentário Inside Europe: 10 Years of Turmoil, transmitido em janeiro pela BBC, o presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, conta: "Perguntei a David Cameron "porque é que decidiste fazer este referendo? É tão perigoso, estúpido até, sabes." Então ele disse-me - e fiquei chocado - que a única razão era o seu próprio partido."
Cameron, hoje com 53 anos, quis calar a ala eurocética do Partido Conservador com a promessa de um referendo, achou que os aliados de coligação, os lib-dem de Nick Clegg, não o iam deixar fazê-lo. Problema: venceu as eleições de 2015 com maioria absoluta, deixou de precisar dos lib-dem e teve de cumprir a promessa do referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE. Achou que ia ganhá-lo. A história provou o contrário. E ele demitiu-se.
Criticou David Cameron, criticou Theresa May e tem criticado, até à exaustão, Boris Johnson. Mas sempre que surgiu a oportunidade de fazer cair o governo, Jeremy Corbyn não o fez. Ou fez só quando sabia que a moção de censura não tinha hipóteses de passar. Desafiado por Boris várias vezes a ir a eleições antecipadas, o líder trabalhista sempre arranjou maneira de contornar o assunto. E todas as vezes que os partidos da oposição discutiram a possibilidade de fazer cair Boris, o problema que surgiu foi sempre: não queremos que o primeiro-ministro interino seja Corbyn.
Liberais-democratas e nacionalistas escoceses, sobretudo, desconfiam da postura dúbia que Corbyn sempre teve em relação ao Brexit. O homem que em 1975 votou contra a adesão do Reino Unido à CEE não defendeu de forma convincente a permanência do país na UE na campanha do referendo de 2016.
Mesmo dentro do próprio Labour, existem várias fações. Nas europeias, por não concordar com a inércia de Corbyn, hoje com 70 anos, houve mesmo trabalhistas a votar nos liberais-democratas, por considerarem que estes estavam em melhor posição de travar o Brexit. Houve também quem acusasse Corbyn de, por causa do seu apoio aos palestinianos, não punir o antissemitismo no Labour. E de se relacionar com terroristas norte-irlandeses.
Nigel Farage, o homem que sempre viveu à sombra do Brexit, está chateado. Boris Johnson aumentou as hipóteses de o Brexit afinal sempre acontecer e, por isso, deixar de ser tema político e arma de arremesso contra a UE. Boris Johnson, se conseguir concretizar o Brexit, vai ficar, aos olhos dos britânicos, com o homem que concretizou o Brexit. E havendo mesmo Brexit, o provável é que já ninguém queira pagar a Farage para ouvir falar do bom que seria o Brexit e do horror que é a UE.
"Eu dediquei a minha vida a isto em 1993... Mas falando convosco aqui, agora, parece o momento mais negro que alguma vez vi. Estamos agora a caminhar para o pior período de humilhação política que o nosso país já alguma vez viu", declarou o líder do Partido do Brexit, no programa do canal de YouTube BreBox, referindo-se ao novo acordo fechado entre Boris Johnson e a UE em Bruxelas.
A decisão sobre esse acordo está agora nas mãos do Parlamento britânico. Mas Farage, de 55 anos, não tem assento aí. Devido aos sistemas eleitorais, o único Parlamento onde se senta é o Europeu. Desde 1999. Primeiro eleito pelo partido UKIP, do qual viria a sair. Agora, pelo Partido do Brexit. A partir dessa tribuna europeia, insultou durante anos tudo e todos, no que toca à UE. E lucrou com rendimentos extraparlamento. Disse inverdades na campanha do Brexit em 2016.
Ministra do Interior de Cameron, Theresa May aceitou suceder-lhe no n.º 10 de Downing Street depois de ele se demitir por causa do resultado do referendo do Brexit de 23 de junho de 2016. Ambicionando legitimar-se nas urnas, convocou eleições antecipadas, a 8 de junho de 2017, mas estas só serviram para o Partido Conservador perder a maioria absoluta que tinha e ficar dependente do apoio dos dez deputados do DUP da Irlanda do Norte para aprovar o que quer que seja.
Em seguida, começou a ser contestada, sem tréguas. Primeiro, o tribunal obrigou-a a requerer a autorização do Parlamento para ativar o Artigo 50.º (para pedir o Brexit formalmente). Depois, o Parlamento rejeitou três vezes o acordo negociado e assinado entre ela e a UE27 em novembro de 2018. Pelo meio, May, de 63 anos, sobreviveu a uma moção de censura interna, apresentada pelos brexiteers radicais do Partido Conservador. E a uma moção de censura contra o seu governo.
Ainda tentou dialogar com a oposição, mas era tarde. Pressionada por todos os lados, enfrentando demissões no seu executivo, anunciou a demissão, entre lágrimas, em maio. Isto depois de o Brexit, inicialmente previsto para 29 de março de 2019, ter sido adiado por duas vezes. Tal como Margaret Thatcher, a Dama de Ferro, May caiu devido a guerras nos conservadores por causa da UE.
Boris Johnson tem uma característica que Theresa May não tinha: viveu vários anos em Bruxelas como jornalista, onde ficou famoso pelas suas intervenções profundamente eurocéticas, conhece a fundo a forma de negociar da UE e das suas instituições. Quer quando as negociações são formais quer quando são feitas nos bastidores, com recurso a todo o tipo de manobras mediáticas pelo meio.
Talvez por isso tenha afirmado, desde o dia em que sucedeu a May na liderança do Partido Conservador e no n.º 10 de Downing Street, que ia tentar um novo acordo do Brexit com a UE. Apesar de essa mesma UE ter jurado, a pés juntos, que o acordo estava fechado e não era passível de ser renegociado. Muitos não acreditaram nele. E acusaram-no de estar a mentir e querer provocar um No Deal Brexit a 31 de outubro.
O certo é que Boris, de 55 anos, conseguiu um novo acordo com a UE, eliminando o controverso ponto do backstop. Pelo meio, viu o tribunal declarar ilegal a sua suspensão forçada do Parlamento, perdeu a maioria em Westminster e o apoio de duas dezenas de deputados conservadores, entre os quais o próprio irmão, Jo Johnson, que se demitiu do governo. Inamovível, Boris levou o acordo a votos no Parlamento britânico, com o apoio da UE, transferindo a responsabilidade para os deputados em Westminster. Mas estes ainda não chegaram a votar nada. Forçado a pedir uma extensão do prazo para a saída, assim fez. Numa carta não assinada. Mas noutra missiva, essa sim, assinada por ele, pediu aos 27 para não lhe darem a extensão que está a pedir, permitindo ao Reino Unido sair mesmo no dia 31.
Leo Varadkar, primeiro-ministro da República da Irlanda desde 14 de junho de 2017, sempre contou com o apoio da UE, unida, em todas as vezes em que disse que o acordo do Brexit estava fechado e não era renegociável. No final, acabou a renegociá-lo com Boris Johnson, tendo o acordo negociado entre Theresa May e a UE27 dado lugar (em parte) a um compromisso que revê o protocolo relativo à Irlanda do Norte e a Declaração Política.
À luz do novo entendimento, que foi anunciado na quinta-feira em Bruxelas e, nesse mesmo dia, recebeu luz verde do Conselho Europeu, o controverso ponto do backstop é removido. Assim, a Irlanda do Norte permaneceria dentro do território aduaneiro da UE após o Brexit, os controlos aduaneiros seriam feitos em território britânico e não na ilha da Irlanda. O novo mecanismo precisaria de autorização parlamentar da Irlanda do Norte quatro anos após a saída do Reino Unido.
Defendendo o acordo, na sexta-feira, colocando-se ao lado de Boris Johnson, Varadkar, de 40 anos, membro do partido conservador irlandês Fine Gael, deixou um aviso aos deputados britânicos que tencionassem votar contra o mesmo no sábado: não deveriam presumir que, se chumbassem o acordo conseguido, a UE iria aprovar uma nova extensão do Artigo 50.º e permitir um novo adiamento do Brexit.
Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia em fim de mandato, é um político há muito habituado a lidar com crises europeias. Um veterano dos processos negociais na UE. Primeiro-ministro do Luxemburgo entre 1995 e 2013, era o chefe de governo há mais tempo em funções quando, em 2014, sucedeu a Durão Barroso no Berlaymont.
No tempo em que exerceu funções, quer no Luxemburgo quer em Bruxelas, testemunhou crises como a do chumbo da Constituição Europeia, a da negociação e aprovação do Tratado de Lisboa, a das dívidas soberanas e da zona euro, a da Grécia, a do Brexit, a da negociação da nova Comissão Europeia...
Na quinta-feira, numa tentativa de ajudar Boris Johnson, Juncker, de 64 anos, afirmou: "Não haverá prolongamento. Concluímos um acordo. Por isso não é caso para estar a falar sobre um adiamento. Tem de ser feito agora. Se temos um acordo, temos um acordo, não é preciso prolongamento. E isso não é só a visão do lado britânico, é essa a minha visão também. Temos um acordo. Não vejo porque haveríamos de ter [mais] um prolongamento."
Famoso pelo seu sentido de humor, pelos seus beijos e abraços aos outros líderes, mas também pelas suas crises de ciática, Juncker em várias ocasiões se revelou como um facilitador de acordos de última hora na UE.
A unidade da UE em torno da República da Irlanda face ao Reino Unido no que toca às negociações do acordo do Brexit é uma exceção. Uma exceção numa UE27 em que todos os dias há trocas de acusações, posições populistas e nacionalistas que põem em causa o projeto de integração europeia. Essa unidade foi garantida, dizem os media especializados em assuntos europeus, muito por mérito de Michel Barnier - o negociador chefe da UE para o Brexit.
Ministro em vários governos franceses desde a década de 1990, Michel Barnier é também um repetente na Comissão Europeia. Nesta equipa de Juncker, foi o responsável pelas negociações do Brexit, na de Barroso pela pasta do Mercado Interno e Serviços. E na de Ursula von der Leyen?
O site Politico.eu apostava nesta sexta-feira que, uma vez efetivado o Brexit, o francês, de 68 anos, é a escolha óbvia do presidente francês, Emmanuel Macron, para substituir Sylvie Goulard. Esta foi rejeitada como comissária pelos deputados das comissões do Mercado Interno e da Indústria do Parlamento Europeu.
Mas, para isso, sublinha o site especializado em assuntos europeus, "Macron teria de ultrapassar o preconceito da política tradicional". É que Barnier, saído do partido de direita Les Républicains, é um membro de longa data do PPE (grupo que no PE é rival do seu Renovar a Europa).
A 9 de setembro, dia em que o Parlamento britânico foi suspenso à força numa finta de Boris Johnson aos deputados, John Bercow, speaker da Câmara dos Comuns, confirmou que deixa o cargo (assumido há dez anos) no próximo dia 31. Haja Brexit ou não. Com acordo ou não. A sua decisão, que já tinha sido anteriormente anunciada, não depende disso.
Apesar de ser speaker do Parlamento britânico desde 2009, foi com a arbitragem dos infindáveis debates do Brexit que Bercow, de 56 anos, se tornou famoso. "Order, order, order!" Foram estas as palavras, gritadas vezes sem conta aos deputados, como se de crianças da escola primária se tratasse, que o tornaram célebre.
Nas mãos dele esteve a decisão de aceitar o debate e a votação de emendas que permitiram ao Parlamento retirar ao governo, primeiro o de May, depois o de Boris, o controlo da agenda parlamentar, para influenciar o curso das decisões tomadas sobre o Brexit em nome do Reino Unido. Aceitou uma que obrigava o primeiro-ministro a pedir a extensão do prazo de saída para dar tempo de aprovar as leis que permitirão implementar o acordo. Os deputados votaram a favor. Boris assim fez, mas pediu ao mesmo tempo a Bruxelas para não dar essa extensão. Agora todos estão a tentar perceber qual o impacto legal dessas cartas.
"Durante o meu tempo como speaker procurei aumentar a relativa autoridade desta legislatura, pela qual não devo qualquer desculpa a ninguém, em nenhum sítio e em nenhum momento. Para dizer uma frase até algo perigosa, também procurei ser o backstop dos backbenchers", declarou em setembro Bercow, entre risos, referindo-se ao controverso ponto do backstop no acordo do Brexit.
Em fim de mandato, tal como Juncker, Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, teve sempre a difícil tarefa de manter aberta a ponte de ligação entre o Reino Unido e os restantes Estados membros. Nem sempre foi fácil. O polaco, de 62 anos, não surgia em público tantas vezes a falar do Brexit como Barnier ou Juncker, mas cada vez que o fazia toda a gente se lembrava.
"Ele [Cameron] disse-me que se sentia à vontade porque, ao mesmo tempo, achava não existir risco de haver mesmo um referendo. Isto porque o seu parceiro de coligação, os liberais-democratas, iria bloquear a ideia. Mas depois, surpreendentemente, ele ganhou as eleições e não precisou de renovar a coligação. Então, paradoxalmente, tornou-se vítima da sua própria história", declarou a um documentário da BBC.
"Tenho estado a pensar como será o lugar especial no inferno para os que promoveram o Brexit, sem sequer terem um plano para o empreender em segurança", escreveu Tusk no Twitter, em fevereiro, estava May sob forte ataque dos brexiteers radicais. "Boris Johnson, aquilo que está em causa não é ganhar este estúpido jogo de passa-culpas. Em causa está o futuro da Europa e do Reino Unido, bem como a garantia dos interesses dos nossos povos", tuitou, no passado dia 8, já furioso com o líder britânico, enquanto se negociava um novo acordo.
Agora, sem saber muito como bem como agir perante as várias cartas de Boris Johnson, a dizer uma coisa e o seu contrário, Tusk, ex-primeiro-ministro polaco, indicou apenas que ia consultar os líderes dos governos da UE27 para saber como reagir em seguida.