Será possível ver e pensar os filmes para além da aceleração mediática em que vivemos? Mais do que isso: será possível superar as visões anedóticas do passado cinéfilo e manter uma relação viva, de prazer e descoberta, com os filmes mais "antigos"? Pois bem, o ciclo Amor & Intimidade, a partir de hoje no cinema Nimas, em Lisboa, responde afirmativamente a tais questões, propondo uma dezena de títulos unidos por um tema transversal - a fronteira entre público e privado -, todos eles acompanhados por debates. A organização pertence ao Instituto de História da Arte, em colaboração com a Medeia Filmes e a Leopardo Filmes, com a participação de investigadores da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa..O texto de apresentação contém uma pergunta cuja pertinência, face às convulsões do nosso presente, importa sublinhar: "Como encarar o facto de as redes sociais alimentarem uma cultura cada vez mais confessional em que já não parece haver lugar para qualquer pudor a respeito da sobre-exposição do Eu?".Está, assim, em jogo tudo aquilo que faz do privado esse domínio de personagens, comportamentos e valores que, por definição, resiste à exposição pública. Os conceitos de "amor" e "intimidade" que o título refere não são, por isso, sugestões de um qualquer romantismo abstrato - são temas enredados com a sensibilidade e os desejos, a vida e a morte de personagens muito concretas..O título de abertura, Deus Sabe Quanto Amei (1958), do norte-americano Vincente Minnelli, e A Minha Noite em Casa de Maud (1969), do francês Eric Rohmer, serão símbolos exemplares de todas essas dinâmicas, sendo também duas das raridades propostas pelo ciclo, que se prolonga até 20 de junho, quinzenalmente, às quartas-feiras. O filme de Minnelli é um objeto lendário que pode resumir a glória romanesca da idade de ouro de Hollywood; com um elenco que inclui Frank Sinatra, Shirley MacLaine e Dean Martin, nele se conta uma história em que a intensidade do amor passa também pelas palavras que não se dizem. Daí o feliz contraste: A Minha Noite em Casa de Maud é o exemplo mais sofisticado do "cinema de palavras" segundo Rohmer, um mergulho na intimidade cujo pudor na exposição dos corpos vai a par da erotização da fala..Boy meets girl.Uma Lição de Amor (1954), de Ingmar Bergman, O Medo (1954), de Roberto Rossellini, e Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais, são referências clássicas que regressam, de algum modo ilustrando uma vontade de perscrutação dos enigmas humanos que antecipa a eclosão das "novas vagas" da década seguinte (sendo já o filme de Resnais um emblema desse movimento em contexto francês)..Nas suas peculiaridades formais e narrativas, os filme de Leos Carax, Paixões Cruzadas (1984), e Philippe Garrel, O Coração Fantasma (1995), surgem como herdeiros diretos dessas "novas vagas"; o de Carax apresenta mesmo um título original que, no imaginário popular, resume o fulgor poético das histórias de amor: Boy Meets Girl (à letra: "rapaz encontra rapariga"),.Saúde-se também o reaparecimento de Buffalo"66 (1998), de e com Vincent Gallo, filme fortemente castigado na altura do seu lançamento, de tal modo foi apropriado pelos arautos do "escândalo": pela sua história passional perpassam os silêncios e mistérios, porventura a própria irrisão, que o impulso amoroso pode conter..Tudo isto sem esquecer a importância fulcral de Irène (2009), com o realizador francês Alain Cavalier a utilizar a sua pequena câmara de vídeo para elaborar uma memória da atriz Irène Tunc (1934-1972) com quem foi casado - uma demonstração muito real de que é possível ser-se radicalmente intimista através dos meios do cinema, recusando a obscenidade emocional da reality TV.